Coimbra tem mais encanto na hora da despedida

 






Passou-se tudo para aqueles lados. Coimbra. Algures, em Portugal. Esteve isolada do mundo e aquilo não lhe fazia bem, porque aquilo não era viver. Tinha sido muito mimada pela família. Mimada no verdadeiro sentido da palavra. Mimo do bom. Comida boa, uma roupa sempre nova a estrear aos domingos, colégio privado, amigos. Faltava-lhe, naquele mimo todo, apenas, um pouco de liberdade. E quando digo liberdade, refiro-me à fase da adolescência, que é quando queremos abrir as asas, experimentar coisas novas, novos sítios, ampliar horizontes. E esse era o senão, com um tio tão severo e conservador, no que diz respeito a expressão de liberdade e modernices. Ainda nem se imaginava que o mundo viria a ser tão perigoso. Pelo menos, para nós, pequenos, no pós-vinte-e-cinco-de-abril. Enfim, a vida tem destas coisas e dizem que não se foge ao destino. Porque ele nos ganha, tão grande é a sua força. Eu digo que, depois do destino a ter fustigado após o mimo, de porrada, e quando digo porrada, quero dizer até aquilo que ninguém quer imaginar, escravidão, sevícias, abuso sexual, humilhação, tortura psicológica e sim, também física, ela fugiu a correr daquilo que se podia colar a ela como um destino fatal, o de se morrer sem salvação, sem ninguém que lhe pudesse valer.

Encontrei-a por acaso, mas nada é nunca por acaso. Existe, talvez uma convergência de linhas que não vemos a olho nu e lá estava eu, ali, perto de Coimbra, vinda doutro ponto do país, com a banda que se acostou naquele parque para ir almoçar. Eram quase três horas da tarde e a fome já se insinuara há muito, mas larica tinham, sobretudo, aqueles homens que haviam estado a carregar de aparelhagem o camião e sabiam que dali a mais três horas, estariam, mais uma vez a descarregar, montar e checkar, com e sem feedbacks, o som e as luzes, para o espetáculo da noite. Vinda de lavar as mãos, sentou-se na mesa da banda, quando o João lhe diz, com um aceno de cabeça que tinha encontrado ali o amigo em comum, de seu pseudónimo Panela que habitava ali perto, nas cercanias. Dirigi-me a ele, cumprimentando-o, de certa forma alegre, já há muito que o não via, nem a ele, nem à esposa e nem às filhas de ambos. Perguntei por ela, ao que me respondeu que estava no carro, estacionado do lado de fora do restaurante. Perguntei porque não entrara ela e, ele foi evasivo na sua resposta:  - Sabes como é, crianças pequenas, hora da mamada, blábláblá. 

Cheirou-me a esturro, a mentira ou a inverdade e perguntei se podia ir cumprimentá-la. Aquiesceu, após uns minutos em silêncio comprometido. 

- Podes ir, mas se calhar está a adormecer a bebé ou a dormir. 

Não almocei. Não almoçamos. Abeirei-me dela e fiquei chocada, assustada, estava quase irreconhecível, mas isso não me demoveu. As meninas dormiam e ela tentou esconder o rosto repleto de hematomas. Não permiti e entrei para o lugar do condutor. Quando lhe fiz as perguntas essenciais, resistiu a responder, mas a minha insistência levou-a a irromper num choro convulsivo. Fiquei com o estômago embrulhado de dor, de uma dor sem causa conhecida. Soube, mais tarde, todos os contornos macabros da história e ainda hoje, tantos anos volvidos, sinto aquela mesma agonia que vivi, ao vê-la, uma espécie de irmã de criação, cheia de escoriações pelo rosto e corpo, que a roupa escondia, mas não os olhos que a traíam, revelando mais até do que as suas parcas palavras, entre soluços. Inteirei-me de tudo. E garanto-vos que, naquele dia, foi como se um comboio me tivesse passado por cima e só tivesse sobrado aquela dor, entre a cabeça e o peito. O terror dominou-me por completo, a ponto de ameaçar sair fora de mim. Meter polícia no meio. Mas isso não teria melhorado a situação dela e nem das meninas. Creio que foi um anjo que me segurou e me pediu para lhe dar a assistência necessária, a partir dali. Assim fiz.

Casou porque se apaixonou. Casou porque a vida de casada lhe permitia a liberdade que o tio não lhe dava. E que, satisfeito com a escolha que ela fez, entendeu e ficou contente por ela. Casou porque sonhava ter uma vida bonita, embora não quisesse filhos imediatamente. Casou porque engravidou. Casou porque desconhecia o lado sombra do sr. Panela. Casou e não demorou, nem meia década, para se arrepender. Desde empregada de lavandaria num país hospedeiro e frio a mulas de droga, ela e as filhas, tudo viveu, tudo sofreu. Por fim, o sr. em questão, enciumado e possessivo, amarrou-a a uma cadeira, num quarto de hotel, rapou-lhe o cabelo com requintes de malvadez, mordeu-a, pisou-a, e obrigou-a a observar ele a foder uma boneca de sexshop, largou a boneca e violou-a, passou por cima dela, cuspiu-lhe e fê-la conhecer o lado perverso da humanidade. Depois, foi buscar as filhas de ambos, fez as malas delas, porque ela não tinha força no corpo para se mexer, e levou-as à mesma casa, onde uns anos antes a fora buscar, bonita e mimada e abandonou-a ali, na porta. Como se, ao deixá-la, pudesse deixar o seu lado perverso e, em simultâneo, a culpa de se ter feito um monstro. Sim, porque o mostro que havia nele, disse-mo o próprio, depois, fora ela que o criara. Não, os monstros não nascem num minuto. São alimentados na infância, primeiro num seio materno ou no biberão, depois gatinham e podem eles próprios ir buscar alimento. Depois, bem, depois o que se espera é que todos os bebés possam ter circunstâncias de vida saudáveis, que lhes possa permitir virem a ser adultos saudáveis e quando menos, que aceitem ajuda externa ou se isolem, definitivamente, para uma caverna onde não possam comprometer mais ninguém na humanidade, a não ser os próprios. 

Há, em muitos recantos das cidades, dos países, no mundo inteiro, monstros destes que são criados no secretismo de situações limite e passam a habitar seres humanos comuns e, volta e meia, meia-volta, nasce uma circunstância que vai atear fogo na vida dessas pessoas comuns e que vai cair em cima de pessoas vulneráveis e, esse fogo é ateado sem que ninguém possa dizer de onde veio e para onde mais vai, quando não denunciado. O que era preciso era denunciar, para estancar. Porque hoje, não sei onde andam os sres. Panelas mas sei que os danos se estenderam pela sua criação e podem perdurar séculos, sobrando para os descendentes dos seus descendentes. 

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