No princípio, não foi o verbo e nem Janeiro





Parafraseando Maria Clementina Diniz, psicóloga clínica (desde 1967 a 2004) já ida do Hospital Júlio de Matos e mulher de causas, no princípio não foi o verbo. 

No princípio, foi o fim em si mesmo. Ou o último dia do ano. 

No princípio foi a ideia e ela se fez prenhe. E cresceu de asas e corpo. Sobretudo de vontade. No princípio, foi a esperança e ela não se divide, mas compreende-se na sua composição etimológica. Spes. Do latim, confiar em algo positivo. O verbo esperar. Esperar. Apenas esperamos grandes causas. As pequenas causas são suplementos aditivos e não bancos de jardim. 

No princípio, não foi o verbo, foi antes o desenho etérico da casa - corpo - asa- telhado, a base do chão onde, apesar das asas, eu posso tocar. Saltar. Caminhar. E quando encetamos o caminho, não o esperamos. A marcha significa caminhos que se abrem e atitudes que se não esperam mais dos outros. O que esperamos tem de vir de nós, o que colhemos vem do caminho. O verbo é uma forma de o mostrar. Quem caminha, sabe, o caminho abre-se e mostra-nos rotundas e caminhos alternativos, vias secundárias, atalhos. Uma vez encetado o caminho, só o verbo o pode estancar. Pausar. Alterar. 

Talvez tenha sido o gesto, a expectativa, o sonho e o erro. Sim, porque há todas as condições de se pensar o verbo, de se movimentar o caminho, de se estruturar o chão, de se abdicar dos protestos que a nossa mente teima em verbalizar. Esperar não é um lugar, mas o caminho sim e ele só se desenrola à medida em que treinamos os verbos, misturamos advérbios de modo, de modo que entendamos que o verbo tanto constrói como destrói. Ele se desenvolve nas articulações entre o caminho e a colheita. No princípio, eu usei o verbo. O verbo me foi devolvido, o de encher. Eu entendi-o como tal, um paliativo, para não dizer não, que é outra forma de dizer que se obteve o que se não quis. Os verbos permitem-nos ancorar, mas só depois. Antes dos gerúndios, antes dos particípios, das metáforas e expropriações. O verbo insinua-se, mesmo sem ser falado, pode vir só como uma insinuação. Não chega a ser ato de verbalizar, mas a consequência das atitudes, dos pensamentos, do que editamos inconscientemente. Assim, o verbo é secundário. Por vezes, materializamos de uma forma inconsciente, usemos ou não o verbo, porque pode acontecer das duas formas. Mas quando uso o verbo, estou a utilizar a segunda via, a de me imiscuir na alteração da realidade. E é aí que distingo o caminho da clareira, o caminho do restante. A presunção da consecução. E nasce a fé. Sim, no princípio pode não ter sido o verbo, mas ele veio adubar o caminho na construção da realidade. Através dele, eu manifesto a fé e ela a realidade. 

Vi-te, e quando te vi acordei. Acordei o verbo. E já cansada de caminhos e de clareiras, encostei o verbo à língua e verbalizei. E do meu verbo nascerá o que ainda não podes ver. Que no tempo correto se fará concreto e me levantará do chão. O verbo há-de parir outro relógio, outro calendário, do qual não (ar)riscarei um só dia. Mas arrisco todo o resto. O resto da criação no verbalizado já. Que mais há, antes do verbo, de janeiro ou de um novo acervo de verbos? Depois de ti, nem verbos dos outros, nem conjugações do diabo. Depois de ti, mais nada.

E isto podia ser uma declaração de guerra. Ou uma carta de amor. São estas escolhas a todo o momento que fazemos. O verbo propicia tudo, embora antes dele, tudo se disponha no caos humano. Isto podia ser uma forma escrita de te dizer que não sei esperar por ti. Que o tempo me vence a vontade. Não estaria a ser correta, de todo. Sobretudo, comigo. O verbo sabe esperar. E se o verbo sabe esperar, não foi, em si mesmo, o princípio, retardo no temporizador as areias, volto à estaca zero, leio de novo as instruções de estar viva e só não vou repetir operações porque já sei materializar qualquer verbo. Isso faz de mim o que eu quiser. E esse é, também, o poder de visualizar e verbalizar de seguida. 

Isto até podia ser uma canção de revolta. Ou um abraço que te dou ou o sorriso que me devolveste, ou o olhar incauto que te traiu. Isto até podia falar do teu medo de me olhares, de sentires que ainda sou tua. Podia ser uma adenda no teu futuro, se o permitisses. O beijo que não me deixaste roubar. Isto pode ser tudo isso e ir mais longe e ser uma nota de autor revelando um crime cometido há décadas. Continuaria a ser a verbalização do que eu já vivi, uma vez. Nunca voltes ao lugar onde foste feliz. Tu não és um lugar. Ou seja, tu não és só um lugar ou uma referência. Nem ponte e nem cruzeiro. Uma imensidão de coisas e pessoas e sentidos que não cabem num texto. Tu não cabes num texto. Cada um verbaliza o que quer. E isto pode ser apenas uma forma de te dizer que ainda te quero, ou que te sinto longe. Que ainda te sonho ou que te vejo construir escadas para uma fuga simulada. Que isto não seja mais do que é. O manifesto das minhas intenções. No princípio, não foste verbo e nem mês de nenhum calendário. Foste tu. Tu foste o princípio. E eu, obediente a mim mesma, dou luz aos corredores do texto interno, aquele que se quer fazer presente nestes dias em que guardo a fé a sete chaves. Tu és o verbo acionado no novo patamar de uma realidade bem longe da três dê. Tu és. E por isso, te repito, vezes sem conta, mesmo que as contes, depois de ti mais nada. E é necessário conheceres-te bem a ti mesmo, para o poderes afirmar, de modo a não haver dúvidas e nem refutações. E nós somos, só e somente, espelhos uns dos outros. E dizer-te isto, dizer-to desta forma escrita, aberta ou semicerrada é ter coragem de tocar no fio invisível da criação e coroar a nossa verdade com o que nos vem de dentro. Dentro de mim, tu e só então, o verbo para extrapolar o restante. E vejo-te daqui nas sombras da vitrine, onde te exponho o que tenho dentro e tu mostras no rosto quem eu sou. Identificação. Eu verbalizo-te inteiro, deixei de te querer só pela metade, cruzando pontos e ruas da minha cidade. Permiti-me anular a perda de memória. Perdi a memória depois de ti. Hoje, deixei os sonhos dos outros para eles. Deixei de ser a bombeira e a enfermeira, a madre Teresa e o apanágio dos verbos de encher. Olho para ti, sem que me vejas, mas sabes que te olho por dentro. E quem vejo é semelhante a mim. E tu encontras então, tempo de mostrares ao que vieste. Da tua grandeza de carácter, do teu conhecimento e sabedoria. E aprendeste a olhar para o espelho sem receio. E o verbo de te valorizares a ti primeiro teve que chegar. E foste o meu aeroporto e eu fui todos os momentos vãos. E tu, todas as experiências colhidas, e eu a torre do tombo. Os catálogos, a história das dinastias, o desenvolvimento das comunidades, os homens e os faróis da humanidade. A ciência e a arte. E o verbo se fez no singular, irrompeu a plenitude de ser-se um consigo mesmo e de gritar nas estações e nas paragens, e cresceu civilizações. A obra nunca se faz completa. Rebenta o artista, o cientista e nela se projeta o esteta. 

Nasce o verbo, mas só depois de ti. 

No princípio, foste tu e só então se obrou neste planeta. 

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