Quem nos rouba a infância
Está tudo escrito. Nada mais há para dizer. Todos trazemos connosco a criança que um dia fomos. As dores, as alegrias, as descobertas, os sonhos e as fantasias, tudo está impresso nessa criança. E olhamos uma criança e nem ousamos olhar com olhos de ver, realmente. A coragem de uma criança que guarda tudo, e tantas vezes nada partilha, das suas angústias e medos, do que as faz tremer no escuro, qual a cor do fantasma, dos impropérios dos adultos, quaisquer adultos, ao lidar com uma criança. Vi um post há dias atrás, uma fotografia de um fotógrafo profissional a preto e branco, com quatro crianças que dizia algo como: deveríamos colocar um cartaz nas crianças, advertindo da sua fragilidade. Concordei. E concordo. Mas tudo é dicotómico. Nesse cartaz, deveria também dizer da sua fortaleza. Quando cala e quando fala, quando dorme e quando vive. Todos os adultos magoados têm uma criança magoada. Todos. Sem exceção. E é daí, no fim de contas, que brota a empatia. Do entendimento da dor nos outros. Do efeito espelho. De entender que todos somos baús de experiências, algumas bem-sucedidas e outras nem tanto. E quando atentamos, quando tomamos o olhar a sério, percebemos, não só a marcha do tempo, mas a sombra desse tempo que persiste no olhar, teimosamente persistindo, teimosamente se quedando para mais um dia e uma noite e uma semana, um mês e um ano e dez anos e a vida toda. Quando crescemos, podemos ter guardados tantos fantasmas quantos anos possuímos. E deixar de amar os outros porque se esqueceram de nos amar. Ou porque não encontraram razões para ficar, porque não deram a mão à criança, naquele dia, naquela hora, em que o céu carregado de nuvens choveu e desabou sobre a sua inocência, sobre a imprudência ou inconstância de adultos, adultos tantas vezes infantis, que não se recuperam, só adiam, só prolongam as angústias dos filhos, dos sobrinhos, dos primos, dos vizinhos, dos parentes, dos professores, dos amigos, e o mundo insiste com o adulto, para que olhe, para que através dos outros se olhe a si mesmo, olhe os filhos com atenção, olhe os pais e o irmão, olhe em volta, desperte a consciência. A dor é um bicho papão mais antigo que a morte, e muitas vezes, quando nos esquecemos de estar presentes, conscientes, atentos, acordados, é esse bicho papão que vai dar a mão à criança ao deus dará. E são tantas crianças ao deus dará, e deus vai dando, mas somos nós que temos que estar presentes, acordados, e quando não estamos, as dores e os papões da infância crescem e tomam medidas divergentes ao amor, à saúde dos sentimentos, dos sonhos. O escuro, por vezes, não é o papão. Por vezes, o papão chama-se pai, primo, tio, professor, doutor, mãe, tia, prima, amiga e tantos outros graus de parentesco e afiliação que a criança acredita que mais vale guardar a dor do que a expor. A solução, muitas vezes, não se encontra para a sua dor, a não ser para a sua consequência, em simultâneo a ela. Encontra-se a criança com a sua dor já morta, a criança morta, os sonhos já nem defuntos se chamam, porque morreram há muitos anos, e quando conseguimos ver, com olhos de querer ver, muitas vezes, a criança já cresceu, e tomou atitudes disruptivas, destrutivas, para si mesma ou para os outros. Ou para ambos. E quantas vezes, que é dizer, na sua maioria, as crianças continuam dentro dos adolescentes e os adolescentes continuam dentro dos adultos, feridos, como pássaros com chumbo dentro, com asas partidas, que morrem devagar, no silêncio, sem que ninguém oiça, que gritam sem voz, sem que possam chorar, guardam tudo, engolem tudo, como se tudo fosse obrigatório engolir, como se fosse normal engolir. A tal normalização do mal. E tantas vezes, adultos que trazem crianças e adolescentes magoados dentro de si transformam-se em seniores cheios de mágoas e azedos, tristes e descontentes, de uma amargura persistente e chamamos-lhes rabugentos, também eles foram ensinados a guardar as cismas, as tristezas, misturadas com as lágrimas e as rezas e os santos e as orações desesperadas. E tantas vezes, esses seniores morrem sós, terrivelmente sós, mais sós do que nunca, por vezes parece que já nem as dores os acompanham, nem a memória, nem a velocidade do pensamento, nem as rugas, nem o vento os pode alcançar e desaguam na terra, seca e estéril, fértil e húmida, tanto faz, é um corpo só que jaz, só mais um! Tráu! mais um corpo cheio de dores que não se pariram, que só magoaram, que só cresceram e que nunca puderam nascer, dores sem capataz, cheios de viscosidades e sem nunca serem vistos, tratados, observados, curados, mais uma alma que parte cheia de mazelas, de dores sem sujeito, ou, quando muito, sujeitos anónimos, mas com um predicado pavoroso, malcheiroso, rebentando caixões, expulsando minhocas, rompendo bíblias e sacramentos, expandindo nas próximas gerações. Quando se diz desta ou daquela criança que já nasce com vaticínio, o menino, a menina, para carregar munições de guerra, para sucumbir na terra, está a dizer-se que neste planeta, o culto à hipocrisia continua, que de humano só a cortesia do nome, que é delicado o assunto, que morra o assunto e que não se fale mais nisso. Que se cale. Que é desperdício falar, como se o céu pudesse ouvir, que aquela criança nasceu na ausência de parentela, na ausência de adultos felizes, na continuidade de padrastos e madrastas da vida, que se fingem ser bonitos, mas são manhosos, que fingem ser distintos, mas são só pavorosos! Que se cale a dor, que se esqueça, que quando uma criança adoeça e morra, que se não volte a falar, que se volte a repetir a desgraça, noutra geração, mas o vício de dar nome às dores devia acabar. Morreu de uma dor que não era dela. Era da mãe dela, da tia dela, da vizinha dela, da sua amiga ou amiga da mãe dela, do pai dela. Mas dela é que não era. Que isto de conjugar a dor, que seja sempre no plural, porque quer-me parecer que quando as dores são conjugadas no plural, que a coisa se anima à solução ideal, que existem mais como aquela e que é necessário trazer luz mais do que uma vela, mais do que uma oração, uma missa de sétimo dia paga ao padre que lhe fez mal, mais uma anormalidade no de si já tão anormal, que é a solene hipocrisia de perdoar com juros de mora e de fantasia aos pedófilos que enrabam os meninos atrás da sacristia, mas não digam nada! Calem o nome, a não ser que seja mal geral, que se ergam mais vozes afinal, que se conte uma multidão para se dar conta que afinal, existe um problema social, o de ferir crianças e acreditar que não faz mal, que lhes não faz mal, que foi, quiçá, acidental, pontual, coloquial ter enrabado o pobre menino que até já levava vaticínio de pobre figura de retórica, a típica família disfuncional, vá, esse pode ser magoado, não faz pior que o que ele vive, que sirva de experimento, que lhes sirva de ornamento, de testamento, de herança de convento ou mosteiro, o menino morteiro, vaticinado para ser enrabado, ludibriado, violado, escarrado, asfixiado, calado! O menino esteja calado! Reze três avé marias e dois pais nossos e já sabe, quando se estiver a pôr o dia, venha à igreja, venha à escola, ao tio, ao primo, ao raio que o parta, que isto até de nascer com vaticínio, não lhe basta ser menino, também precisa ter sorte! Antes a morte!
E morrem muitos, continuando a respirar, morrem muitos, esganando a verdade da sociedade doente, deprimida, paciente crónica, triste e estrangulada, que continua a passear-se depois do escândalo na porta, dentro da porta, no quarto, na sala, na escola, na igreja, no convento, no parlamento, e persiste, insiste, mantém os vilões soltos, condecorados, disfarçados de humanos, a instituição retrata-se e continua a violar, mas por ora mais discreta, a sociedade finge-se compadecida da dor da criança, mas deve retratar-se de outra maneira, deve dizer-se a si mesma: antes ele do que eu, antes ele do que o meu, antes vós do que nós, e nesse antes, continua, na calada da noite, na calada do dia, nos buracos, atrás das portas, a dor continua a fazer reféns, que crescem doentes, que crescem tristes, descontentes que carregam chumbo nas asas, que morrem antes mesmo do julgamento final, que se empurram na vergonha, no medo de represálias, que se escondem, que se omitem, mas que jamais se vomitem e tinjam o sagrado tecido das instituições cheias de vícios e de malícia, de pecados e de pais nossos!
A fome, a falta de asseio na casa, a falta de tato, a falta de teto, todas estas faltas não provocam tanta dor, como a falta de pudor e de empatia, na solene e hipócrita sociedade de hoje em dia.
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