Colunas de idealismo se erguem

 



Carregávamos, quase todos, a marca humana da desesperança, chegados aqui. Torpe inconsciência tomada pelos fait divers mediáticos e sem escrutínio da guerra. E seguíamos todos, montanha acima, a estrela da tarde, na noite imensa. O rio combalido, sugado e escuro, e ao seu lado, várias colunas de fumo, e no ar o cheiro de queimadas, e, na terra, o sulco de pneus grossos. Tudo nos embriagava e se fosse uma pretensão de alarme, funcionava, ainda que muitos não déssemos ouvidos, emprestássemos atenção. E as crianças esperavam, guardadas nos armazéns e pedia-se lhes silêncio, que se mantivessem caladas e ocupadas para que a tristeza não lhes entorpecesse a esperança. Eram tempos estranhos. De um temível pronúncio. Três de nós carregava garrafas vazias e sacos de cama amarfanhados. Os outros, ferramentas e conservas, outros almofadas e roupas, outros ainda, zombies, carregavam fantasmas. O sopro do vento fustigava mais ainda as colunas de fumo que se podiam ver a bastante distância. O mundo estava a precipitar-se para o entardecer. Da testa limpávamos o suor, mas o medo não se ia, ficava connosco até adormecermos por exaustão. Não falávamos. Com receio de acordarmos a deceção. Fazíamos o despiste como as equipas na tropa, revezando-nos, sem pilhas, a água contada, as conservas contadas, as mantas contadas, e, por cima de nós, o cinturão de Órion, abaixo de nós, a planície bem abaixo, as rochas e o rio, e os animais, que procuravam, também eles, sobreviver à extinção que haveriam de querer para os povos existentes. Tentando se segurar apenas num pé, para apoiar o flanco junto à pedra, onde enchíamos garrafas, estava Belchior. Exausto, com evidentes sinais de fadiga, jamais um ai, jamais. E todos os que se preparavam para o próximo turno, tentavam fazer mais, de modo a poupá-lo. Era incansável, determinado, feroz. Um resistente, um humano indomável que encontrava forças na fraqueza. Assim, eram alguns, os especiais. E eu chorava baixinho, tirando do sapato lama e cascalho que me dificultava a marcha. Reconhecia estar gasta. Exausta, Esfomeada. Sabia que seria longa a operação de resgate. Que poderia levar horas até que soubéssemos via emissor se estávamos perto ou longe da falha. A escuridão só era banhada pelas estrelas. Mais nada. Quando as garrafas ficaram cheias, voltamos à parte superior traseira do monte, tentando vislumbrar no escuro do horizonte os armazéns, onde os meninos se apinhavam, obedecendo ordens de segurança. Temendo. Tremendo, talvez de frio e fome, talvez de medo. Talvez de esperança. Contavam connosco. Mesmo quando ouviam ao longe o som de balas, o estrondo de fogo, cruzando o céu. Obedeciam por segurança, porque só em guerra se pode pedir silêncio a uma criança. Belchior gritou. Confesso que encostada ao arbusto grosso e farfalhudo da parte traseira da rocha, adormeci, e quando ouvi o som do grito a trespassar a noite, foi quando senti o meu pé esquerdo latejar. Outros se abaixaram e ouviu-se o sussurro controlado de algumas línguas e dialetos. Todos temiam não alcançar os armazéns. As garrafas, os artefactos não pesavam tanto quanto as nossas respirações intranquilas. E o terror era maior por ser desconhecido o inimigo. Uma mulher grande, com imensas tranças suportadas por um elástico ergueu os braços e pediu para que, de entre seis de nós, dividíssemos as garrafas, que seria mais fácil alcançar a planície. E todos os outros em colunas de três, devagar, caminhariam devagar, protegendo os seis com as cargas. Andámos uns trezentos metros. Pedi para me sentar, para retirar os sapatos. Negaram-me. Aceitei a dor, mantive os sapatos, descansei apenas os braços e as mãos, e em francês, alguém me disse se seria da minha vontade passar para o exterior, que se resignaria a carregar a minha parte. - Merci, mais non. Je peux. Caminhamos mais trezentos metros, sempre tendia para o otimismo nos momentos mais penosos. E o céu voltou a incendiar. Recuámos. Faróis ao longe. Todos receberam ordens para descerem ao chão. Com o mínimo de ruído possível. Entre vários de nós, as suas sombras, pude ver o que me pareceu ser chamas, misturadas ao fumo. E contentores. Uma espécie de alegria e de dor se misturaram dentro de mim. Pressenti que estávamos demasiado perto. Não eram armazéns, mas sim contentores de metal. Eram o que servia de suporte para proteger aquelas crianças, talvez cem ou mais, com apenas três adultos esgotados. Falei em português, pausadamente e tentei manter a voz isenta de emoção, das emoções que nos dominavam. - Amigos, vou abandonar a coluna. A uns cento e cinquenta metros, do lado esquerdo, avistei contentores. Falaram-nos de armazéns. São contentores. Vou cumprir o que prometi, levo a carga, mas vou largar os sapatos. Seja o que Deus quiser. Certifiquei-me que me ouviram. E largando os sapatos, ainda acreditando que iriam tentar impedir-me, estava pronta para retaliar e lançar-me na corrida. Um novo morteiro de luz incendiou a noite e eu tive a certeza de que eram contentores que eu via e até acreditei que o metal ecoava no espaço por onde caminhávamos todos. Não havia engano. Mesmo sem recetor, mesmo de emissores calados, os ruídos controlados, mesmo sem satélites disponíveis, chegáramos onde éramos necessários. Mantive na mão, os sacos com garrafas e conservas, nas costas sacos de cama, comecei a caminhar em direção à imagem que gravei, o meu gps mental. Atrás de mim, senti o chão tremer. Não aguardei mais. Mantive a mesma passada, larga e segura, não contava com mais obstáculos, não aceitava mais nada. Só chegar onde estivessem os contentores apinhados de crianças esfomeadas, cansadas. Só ali pararia. 

Bati o joelho num contentor. Larguei a carga. E sorri. Estavam todos ao meu lado, todos se abraçando, todos rompendo em lágrimas, todos exaustos. Bati três vezes no metal e alguém abriu uma portinhola grossa e logo de seguida, um coro infantil de crianças nos alcançou, à medida que adentrávamos naquele túnel metálico. O ar cheirava a fezes, mas não havia tempo para pensar, só para satisfazer aqueles meninos cansados, maltratados da guerra. Não era tempo de limpar armas. Um estrangeiro de nacionalidade arménia veio até mim e deu-me um beijo. Aceitei e abracei-o, contente. Podia ter corrido mal. Falou-me, outra vez em francês, que tinha um penso de alginato e que o ia usar no meu pé, para que não infecionasse. E um lingote para caminhar, se necessário. 

Não sabíamos como seria o dia seguinte. Ou se haveria dia seguinte. Naquele momento, éramos uma amostra de humanos que se recusava à extinção. E aquele ato haveria de ser um de muitos, da bravura que nos nasce quando sabemos que em algum lado, existem crianças a sofrer com os males da inconsciência humana. Não falávamos de Apocalipse ou de Armageddon, porque não era isso que pretendíamos exponenciar. Belchior recusou alimento, apenas dois goles de água e chamou-me pelo nome. Agarrando a perna esquerda com a mão, tentando erguê-la, fui subida no seu colo. Ao lado da portinhola de metal do contentor, depositou-me encostada na parede fria do metal, na sua camisa de flanela e puxou de dois cigarros. A dor no pé quase desapareceu. Eu sabia, a minha intuição já mo houvera dito. Iria ser duro prosseguir, mas não havia de ser por falta de coragem ou planos. Ou de céu ou de anjos. 


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