Pertencer ao amor

 


Amanhã é uma data especial. Aliás, todos os dias são especiais. Todos os dias nascemos e morremos, todos os dias, nos renovamos. Todos os dias e todas as noites são momentos de comemorarmos a vida. No final da refeição, que é o tempo de realizar as operações de limpeza, lavar o fogão, esfregar os balcões e a banca, meter a loiça na máquina, a pastilha, limpar a máquina do café, as rotinas que me matam devagar. E como diz a minha mãe, as rotinas a ti ainda não te matam, mas moem. Ela sabe a aversão que tenho com as rotinas, os dias serem sempre iguais, maquinais. A única coisa que vai mudando é a hora, o cardápio, um outro prato, uma outra forma de cozinhar o mesmo produto, experimentar coisas novas, paladares diferentes. Eu deveria gostar mais de rotinas, por ter acúmulo de planetas em virgem que é a minha casa três ou na casa seis, deveria ter algum sinalizador de "é proibido fazer sempre da mesma forma", é necessário romper padrões, porque sempre fui avessa a eles. Não gosto das coisas ensaiadas, mas não sou radical. Conheço quem seja bem mais avessa a essas formas padronizadas de celebrar a vida. E eu, que nem deveria apreciar tanto as celebrações da vida, porque sofri imenso no ventre, eu que nem devia gostar tanto de pessoas, a maioria fez-me mal, eu que não deveria ser a alegria em movimento. E por isso, encontro mais razões ainda, para me celebrar e para apreciar a grande mulher-pessoa-gente que sou e fui, sempre. Amanhã a minha mãe aniversaria. Oitenta. Sem mais nem pra quê, enquanto ela comia duas bolas de gelado ao invés da maça spriega, e eu tirava um café para as duas, começou a falar do meu nascimento. Sem mais e nem pra quê. Talvez porque lhe tenha dito que encomendei o bolo dela, talvez porque lhe tenha perguntado se continua a lembrar-se da mãe e do pai dela, talvez porque lhe tenha perguntado se sabia a que horas nasceu, se de dia ou de noite, talvez por isso, ou talvez por nada disso. E antes que começasse a falar na sheiliana, que parece ser o seu assunto favorito, desata a falar do meu nascimento. Que teve albumina, já depois de ter completado o tempo, que trabalhou durante o dia até às duas da tarde, na 10ª enfermaria de mulheres (onde, curiosamente eu trabalhei também), onde o meu pai me levava, um mês mais tarde, para ela me amamentar, e que a bolsa tinha rebentado e que foi à loja do meu pai, tendo apenas que atravessar a rua, do hospital para a loja, que foi ao wc e que teve que colocar uma toalhinha, porque o líquido da bolsa continuava a jorrar e as dores a incomodar. Que foi para casa, na altura na rua do Cunha, em Paranhos, que ainda se deitou, mas não aguentou estar deitada. Que as dores começaram a apertar. Que o meu pai chegou a casa e chamou a parteira. Que a mesma disse que ainda estava demorado, o acontecimento. Que a voltassem a chamar mais próximo da hora do nascimento. Que a casa estava cheia de gente. A tia Joaquina nervosa. A titi que não abandonou o quarto dos meus pais, nem o meu pai, nem a avó Bina. Que o meu pai não aguentava ver a minha mãe queixar-se com as dores. Logo a minha mãe, que nunca a ouvi queixar-se de dores. Nunca. Nem um ai. Nem com enxaquecas. Que a parteira por volta da meia-noite e meia voltou a ir embora e dizer que estava há distância de um telefonema. Que lhe deu um injetável para apressar o parto. Que voltaria assim que a chamassem. Que o meu pai nervoso, rasgava o chão com os pés e com a ansiedade, de cinco em cinco minutos se aproximava dela para lhe perguntar e então, e então, que tal, Eva? e então, como te sentes? E que por volta das quatro, naquela casa grande ninguém dormia, porque o bebé do Chico ia nascer, que temiam pelo coração dele, a gritar de ansiedade, que a criança não queria descer ao mundo, que por volta das quatro e meia a parteira já lá estava outra vez, que passados uns quarenta e cinco minutos, ela estava a pegar na tesoura para cortar a minha mãe e que o meu pai não permitiu e disse: enfermeira, já vai nascer, eu sinto que já aí vem, quer ver o dia, e que voltou a aproximar-se da minha mãe, rodeando o seu pescoço, num gesto amistoso de carinho e compreensão e lhe disse: Eva, tem calma! e que ela lhe disse: pois, Francisco, não és tu! Dói-te alguma coisa, e prás, deu-lhe um chapadão no rosto, que se descontrolou e lhe deu um estalo e ele ficou com ele, continuou a fazer-lhe carícias no rosto, até ela virar a cara para o lado e a titi chamar o pai, anda cá Chico, é natural que a paciência se vá, ela está há tantas horas em trabalho de parto, pois que sim, que era natural, que o que não era natural era o bebé não querer vir para os braços de um pai tão ansioso! E que a enfermeira voltou a ameaçar com a tesoura ás cinco e quarenta e cinco e que eu nasci ás cinco e cinquenta e cinco, que o sol já estava a nascer comigo, que o dia ia ser bonito, que a mãe nem quis ver o bebé, nem viu, simplesmente adormeceu, sim, não te vi, não quis sequer ver, só os ouvi a rir e a abrir champanhe, ouvi-os rir ainda mais depois do champanhe e nem sei se choraste ou não. Sei que o teu pai que detestava ver bebés de chupetas e biberons, nessa manhã em que nasceste, foi comprar uma chupeta anatómica para ti, porque não suportava ver e ouvir-te chorar. Foi assim que te vi, nessa manhã, ainda cansada, mas vi-te mais cansada que eu, parecia que tinhas levado uma tareia, estavas escura, estavas desolhada, estavas pele e osso e feia. Mas estavas viva. E só passado dois meses nos demos conta que fazias alergia aos leites que começamos a dar-te porque eu deixei de ter leite quinze dias depois de teres nascido e tu a esfolares toda, como um gato, que fazias alergia aos leites, aos tecidos, aos metais, a tudo! E se eu não te soube estimar, nessa altura, porque estive sempre a trabalhar, as tuas tias deram-te colo e o teu pai foi incansável, cantava-te, embalava-te e quando o médico pediatra amigo do teu pai disse que fazias alergia a tudo, começamos a dar-te leite condensado que era o único que não vomitavas, que só podias ter roupa cem por cento algodão, que nem engordavas, que tiveste que vir para esta aldeia, para te aplicarem um unguento na pele, que foste difícil desde que nasceste e foi aqui que te curaram. Ao eczema. E eu que não queria nascer, nasci e agradeço a vida, e a minha mãe que completa oitenta anos amanhã não sabe a que horas veio e nem como veio, nem se comemoraram o seu nascimento ou se foi mais um, nem se havia gente envolta, ansioso por vê-la nascer, mas também ela gosta de viver e já me pediu para a por bonita para amanhã. Porque não é todos os dias que se nasce, que se pertence a este plano, que se cumprem missões com datas extensas. Vê só, Cristina, sempre achei que ia morrer com a idade da minha mãe, e afinal, a minha mãe morreu com a tua idade e eu ainda cá estou!
Quando nascemos, sentimos o chamado, sabemos que vimos cumprir, com quem vimos cumprir e, talvez por isso, nos atrasemos, talvez por isso queiramos cancelar o nascimento, talvez por isso, ou talvez por outras coisas que se demoram em nós, como o sentido de pertença ou a ausência desse sentido. Quando nascemos, rompemos o véu entre dois mundos, perdemos o acesso a ambos e não temos outra escolha senão cumprir o que viemos fazer. E enquanto cá andarmos, que nos sobre sempre a atitude de celebrar a vida e cumprir a missão. 


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