Laura de Jesus
Lugares da alma
Vagueei durante algum tempo até descobrir,
ao acaso, onde me levava a alma.
Esta alma de viajante que tenho.
E nem vais acreditar.
Todos os locais onde estivemos, tu e eu,
em que éramos cúmplices de coisa nenhuma
e do amor que se construía em mim.
Há lugares que se apagam, aos quais
não voltamos. Nunca mais.
Há outros que teimamos em repetir,
nos regressos a nós e aos outros.
Hoje regressei a ti, nos muitos quilómetros
que fiz contigo. Voltei a chorar a saudade
do teu sorriso e da tua calma.
Da tua ternura e do teu "amor".
Tinhas sombras para mim
e eu precisava delas mornas e espontâneas.
A poesia dos meus dias que me trazia
o sol e me fazia acreditar nos amanhãs todos.
Fiquei parada com a música que ouvíamos
e os vizinhos daquele prédio não deviam
perceber quem fica num sítio a olhar o vago
horas infinitas e a desprender-se do tempo
como quem se desprende da vida.
E lá estava eu na rua do Sol
Não me importei quando me viram com o
rosto molhado e nem me importei
quando me perguntaram porque não ia eu à festa.
A festa eras tu.
Num sítio qualquer, onde quer que estivesses,
deverias ter-me ouvido chamar.
Sei que sim, ouviste.
E sei que gritei, mas nada aconteceu.
Os lugares são pedaços de nós que
marcamos com vivências.
Decorei o contorno dos estores,
adivinhei a preparação dos jantares
por ali, vi-os sacudirem tapetes e
passarem a ferro nas marquises
transparentes. E também vi gatos
debruçados e carros com seres mal
dispostos que aguardavam que a
transeunte do veículo cedesse o
lugar de estacionamento para que
ali pudessem estacionar. Ela não cedeu.
Porque aquele lugar era dela.
E vi-te passar. Levavas o que deduzo
ser um livro e vestias uma
t-shirt preta. Talvez a mesma onde as
minhas mãos já tinham acariciado o
teu peito. Ou talvez outra. Vinhas de
casa de um amigo, porventura.
Vestias uma ganga escura. Talvez a
mesma dos nossos domingos de verão.
Que te acompanhavam nas caminhadas a pé
que tanto gostavas.
Calçavas uns ténis. Não te os vi, mas adivinhei
pelo teu andar ligeiro. Não me viste.
Mas estavas em mim, sem saberes.
E porque há lugares que nos atraiçoam
e nos fazem regressar (como o de um
criminoso que volta à cena do crime,
das andorinhas que regressam
uma e outra vez ao ninho do ano anterior),
hoje estive no teu lugar e tentei não fazer presença.
Apenas amor. Enviei-te amor nas vibrações do vento.
Só quero que sejas tão imensamente
feliz. Num recôndito da alma,
sentiste-me dentro. Era lá que eu estava.
E é lá que volto quando perco o chão.
A ti.
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