Dualidades

 




Entre o que pensamos e sentimos, pode haver abismos. Todos o sabemos. Eu penso em ti e não te posso sentir fisicamente. Mas não é de todo verdade, não com relação ao amor. Bem vês: continuamos a amar almas, espíritos cujos corpos se esfumaram e, no entanto, o fio mantém-se, por onde sobe e desce esse amor. Um cordel de filigrana fina de éter, da luz divina nos une a todos para sempre até ao infinito e para além dele. Só as emoções podem manter o fogo aceso, a memória, propriedade do pensamento, mas ambas salvaguardadas por esses afetos. É um processo mágico, embora as ciências humanas tenham tentado transformá-lo, explicá-lo, pensá-lo em algo racional, sem qualquer propriedade trans temporal.

Hoje, houve festa no céu. E eu estive presente e quando digo presente, refiro-me ao meu coração, sim, hoje houve festa no meu coração. O meu pai sempre jovem sorria, sentado na sua cadeira de mogno, e uma parede de pedra escura cerceado por buganvílias e glicínias perfumava o ar. Tu estavas lá, comigo, sem nem te poderes pronunciar. Só se eu te animasse. Mas não te animei, limitei-me a vislumbrar todos os detalhes com atenção e curiosidade. Nunca tinha assistido a um aniversário naquele plano. Muitos vultos se passeavam por entre as minhas mãos e os pés do meu pai. Uma sala aberta ao tempo, onde sorrisos e sussurros cúmplices mantinham a grafonola de música a tocar e os semblantes do aniversariante e dos seus amigos em perpétua alegria. Vi as cartas, creio que jogavam a sueca, os copos tilintavam de limonadas e gasosas, de espumantes e cigarros. Sim, no céu também se fuma. Tudo se passa por lá, como por aqui. À exceção dos maus sentimentos. Lá, os sentimentos são nobres, ao contrário dos deste plano, que oscilam, tanto como os humores das pessoas, a irritante frustração e a inquietante alegria de fogo. Lá, até o olfato é nobre, porque não há qualquer cheiro nauseabundo, qualquer mentira a perturbar, o perfume das buganvílias e glicínias neutralizaria qualquer outro odor menos apropriado, digamos assim, nem há cheiro de velas, nem de animais mortos, nem o grito de desamparados ou o lampejo triste de doenças. Se estiveres atento, apenas o som do cravo e das flautas de oboé se mantém permanente, todo o resto são suspiros e risos, luzes que se espalham para além do visível. Não há noite nem dia, nem calor e nem frio, não se semeia e nem se colhe, a música perpétua é a tónica constante. E dominante.

Hoje a festa mostrou-me novos rostos, para além dos que eu já conhecia, pude ter a certeza de que a matéria dos sonhos reproduzidos durante noites há muitos anos se baseavam noutros aniversários em que estive presente, olhares sem rosto bordados dessa matéria contagiosa do amor. Mesmo entre aqueles que haviam sido rivais no plano em que nos encontramos, nós vestidos com o corpo físico, mantêm esse fio do amor que só é visível por lá. Quem tem olhos pode ver. E os olhos não são estas duas bolas que temos no perfil entre duas orelhas, dois parietais, não. Os olhos são essa bola de fogo chamada de amor. No outro plano, o fogo é alegria permanente, entre uns que chegam e partem e outros que ficam e se demoram, entre uns que sussurram e sorriem e outros que parecem surpreendidos com cada mover de folhas dos arbustos e com cada nota reproduzida pelos instrumentistas. As aleluias são todas de luz doirada, os anjos são tudo o que move ao redor dos fios que vibram numa orquestra. As vozes são infinitamente mais doces que os mais belos cantares de sereias. Hoje cantaram os aniversários de todos os pais já idos, tal como o fazem todos os dias, porque todos os dias aniversariam os que estão e os que ficaram e os que foram e vão voltando. E, no final de todos os aniversários, quando somos convidados, os que voltam a descer, tentam estimular-nos a voltar a este plano de experiências, de exploração, como mais uma viagem importante para o desenvolvimento da alma, para o cumprir de pactos, prometendo que quando regressarmos será muito melhor, poderemos ver muito mais almas das quais sentimos falta, de uma saudade que só encontra acalento na música apoteótica e na magia do amor. E esta dualidade em que vivemos é, se olhares bem a dualidade em que continuarás a viver, do outro lado, porque nascer aqui significa a escapada de lá, morrer aqui significará sempre a chegada prolongada a casa, e todas as viagens que fazemos, aqui como lá, fazem-nos sempre sentir vontade do regresso ao lar. 

Na terra, o meu pai sopraria 79 anos hoje, se cá estivesse. Eu auxiliei. Hoje, ao invés de lhe alisar as rugas de expressão a ele, ele alisou as minhas de preocupação, que as pressentiu. Hoje eu vi o franzir de testa do meu pai, cheia de risquinhas que dizem ser de felicidade. Começo a acreditar que sim. Que o meu pai hoje esteve feliz. E se anteontem, o meu carro perdeu os travões e desapareceu-me numa descida ingreme e não o tornei a ver, hoje, voltei a vê-lo, com pouca saúde, é verdade, mas com o seu ar modesto, mirar-me da esquina, completamente castanho de pó das obras da Penafiel Verde, mas o meu pai não permitiu que ficasse sem os travões. Hoje, na nortenha garantiram-me que não ficaria sem travões. Atestaram-me o óleo do abs e pediram-me que arranjasse forma de deixar o carro no hotel deles por dois dias. Disse-lhes que iria ver da minha disponibilidade. Mas hoje não tenho que pensar mais nisso. Por hoje, ficou tudo resolvido. Trouxe comigo do céu uma vela trincada do aniversário dele que nem sequer tinha acontecido ainda. Tenho quase a certeza que foi ele me meteu a vela nas mãos. Sim, o meu pai aniversariou hoje, mas o presente fui eu que recebi. 

E bem vês, quando me lês que não há terras nem personagens, nem obstáculos físicos e nem de qualquer outro parâmetro que impeçam o amor de acontecer e progredir em ascensão. Entre nós, existirá sempre este fio de filigrana fina, de amor que ascende e continua entre planos. Ainda com a vela entre os dentes, mordiscada e cuspida, senti o cheiro das flores inundar-me e logo a seguir, o teu sorriso. Beijei-te os olhos fechados, cheirei os teus cabelos desalinhados na almofada e cheiravam a flores. Não, estou sóbria. Vi-te E nem sequer bebi, nem sequer te vi fisicamente falando. O amor não morre. 

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