Escrevo-te





...mas já não publico. Escrevo e guardo, como a figura do quatro de ouros, guardo o amor que te tenho, como se estéril fosse, como se nem meu fosse, como se merecesse a tumba fria de uma terra que nada produz. Escrevo-te e mantenho-me fria, em homenagem à tua frieza que me congela os sentidos. Escrevo-te, mas talvez seja para mim que o deva fazer. Amar-me a mim, mais a mim, só a mim, que os abutres não possam ver que o amor continua a ser o mais nobre dos sentimentos, a maior dádiva humana, o que sentimos pelo outro é pura filigrana, tecida pelos mais finos fios da nossa nobreza humana. E por isso te guardo em mim, cada sorriso, cada cabelo, cada matiz dos teus soberanos sentidos, das tuas observações evasivas, das tuas qualidades criadoras, do teu abraço que me há-de perseguir até ao cobertor de terra castanha e húmida onde tudo vira pó, e depois nada que ali se veja, exceto a secura das pétalas de flores atiradas em desdém, atiradas a um alguém que se desvelou, que se desnutriu e que por fim, partiu, com o amor como se fosse um quatro de ouros. O amor não pode ser guardado. É um bicho que necessita de ser partilha, de andar nos braços, na boca dos humanos, que enlouqueça por dentro, que entre em erupção e se expanda em lava severa e quente, que exija um corpo igual onde se faça rio, planura, tanque, corrente, e guardo-te em mim, para que não possam ver que me desfaço em águas e fogo na tua lembrança que um dia me há-de queimar até virar pó, grão da mesma mó, e não te escrevo mais. Guardo-te sacralizado, inumano, inteiro, divinizado, que me há-de temperar os dias até vir, de soslaio, esse dia, essa hora, esse raio que me extinga e me liberte para outros céus onde amar-te não seja pecado, incoerência ou improvidência dos deuses. E mantenho comigo as fotos, como num museu, que passam dos meus dedos, da minha boca e regressam ao esconderijo entre as páginas do livro que eu estiver a ler, andando de autor em autor, tornando-te segredo calado, lembrança eterna, flagelo-me enquanto te beijo, te molho, te desejo, te quero, te enrolo, como marcador de páginas onde te fazes tu uma promessa que se desvinculou, que perdeu a pressa de se concretizar, um sonho individual que não soube perecer. Escrevo-te, mas não te edito, não te publico, por seres a façanha, a minha última conjetura, dilema, fragância humana, o meu novelo de dores, o meu corpo de volúpia, as minhas entranhas, a minha cama, o meu cobertor, a minha musa, a minha manha, o meu ontem perdido no hoje, o meu tudo que se entranha na minha pele, entre os órgãos, as vísceras, as vagas, os nevoeiros, o redentor de vidas, e sussurro-te o amor no escuro, no sonho, enquanto durmo, mas divulgar-te não, que até as paredes te invejam, os velhos móveis, o espelho, os adornos desejam ser amados, as brisas da tarde te buscam através dos meus olhos que mirram e te encontram esquálido entre a imagem dois por três, miniatura do imenso que em mim és e serás sempre, ternura de criança, desejo de mulher, tu adamastor, tu cabo bojador, no silêncio das notas musicais, nas pausas desiguais do tempo, guardo-te, calo-te, calo-me. 

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