Sobreviver aos lutos

 



Ele queixa-se de dores. Em surdina. Mas só à psiquiatra e à alma. São mais que físicas, as outras, as dores de existir pra além do corpo. Chamam-lhes dores da alma. Porque já pediu ao seu anjo que o deixasse partir. Primeiro foi a sogra, depois a esposa, depois a filha. E ele já não queria contar mais pesadelos. Que lhe rasgavam os planos de futuro para um passado que ele continuava a reviver e aquele sentimento de orfandade e de injustiça colava-se a ele, sobretudo de dia, quando deitava a cabeça na almofada, ou quando caminhava nas ruas, tentando adivinhar as ambições da humanidade, que ainda havia, no olhar dos outros. De noite trabalhava, fazendo pão, cacetes, bolos variados com uma equipe de mais três pessoas. Bebia café como se fosse fel, para matar as dores amargas. Elas sobreviviam. Nas ruas, nos centros, nos hipers, havia pessoas, animais, crianças que continuavam a conviver e a sorrir, que bom ver gente feliz, mas a sua culpa, havia de vingar a todos os sorrisos e conversas. Ele ficava a estudar e a comparar as suas dores com as dos outros. As suas perdiam expressão nas portas dos hospitais, nas portas dos cemitérios, porém, quando se avizinhava a hora de colocar a cabeça na almofada, não tinha como amarfanhá-la, calá-la, amordaçá-la e ela ganhava todo o espaço, a ponto de adormecer na exaustão, enquanto apertava os parietais, agarrado à cabeça, tentando calar a voz da consciência e, dias e dias sem dormir, noites e noites a fazer pão, a tecer massas, a espremê-las, com aquela depressão impressa nos maxilares e nos olhos escorridos. Não olhava ninguém diretamente nos olhos, mas sentia que todos lhe adivinhavam os ais e, nas suas costas, sentia a comiseração. Coitado do Zé Miguel. Coitado dele. Ele era eu, o coitado que tinha tido uma vida bonita, bem estruturada, uma vida simples. Feliz. Era feliz, não era? Eras sim, eras feliz. Mas quando a felicidade passa a ter o lugar invertido na nossa vida, quando passa a constar do passado e não a ser reclamado no presente ou planeado pró futuro, ali já, no virar da esquina, o bicho, esse bicho feio e peludo, colava-se ao nosso corpo e devorava-nos a alma, lentamente, de uma forma invasiva e sem respeito nenhum, comia-nos a seiva da vida, reduzia-nos a um fantasma. E ameaçava ficar para sempre. E em processo de dor, para sempre é uma eutanásia rápida e sem vacilo. E enquanto não conheci esse bicho feio e peludo, ia cumprindo um sem fim de sonhos pequenos que quando era criança, acreditava serem enormes. Como ir de férias ao estrangeiro, andar de navio, escalar uma montanha nos Perineus, comprar um carro topo de gama, ficar por temporadas de quinze dias nos algarves feito lagosta, a apanhar sol e a dormir tardes inteiras, a almoçar fora e jantar fora, que chegava a ser cansativo, a sonhar com o dia em que a Sara crescesse e casasse e tivesse filhos e eu netos, a imaginar a Irene ficar com rugas e sempre meiga e pachorrenta. A visitar parques de animais selvagens. A minha Irene também. Cumprimos alguns sonhos. À minha Sara não tinha sido dado muito tempo de cumpri-los, sequer de os desenhar e nem ele podia cumprir por ela. Primeiro, chegara a notícia da perda da mãe de Irene e avó de Sara. A Ana Mendes. Um acidente cardiovascular. Triste. Porque ela era uma joia. Porque se ofertava para tudo e todos. Porque era um dínamo e se multiplicava em mil. E ainda tinha tempo para dançar folclore e cantar no coro e cozinhar nas quermesses e desenhar cartazes nas manifestações. Compreendia Irene. Uma órfã de uma mãe imensa. Foi como perder a família toda, para a minha esposa. Tentei dar-lhe força, mas eu próprio me sentia vazio sem as gargalhadas da sogra. Quando se é alegre e se ocupa assim a vida toda dos outros, o vazio é o lugar inevitável e previsível dos que lhe sobram. A minha Irene tinha tentado. Ainda cheguei a vê-la desenhar um sorriso ou outro na creche, quando levava as refeições para a cantina dos miúdos. E eu pegava, às vezes, em metade das frases dela, das frases que ela não acabava e perguntava pelos gaiatos, das asneiras que a educadora contava, dos desenhos que eles faziam para a professora entregar à cozinheira, à minha Irene. Mas e que disse a professora, então? E a minha Irene tentava retomar, mas se me descuidava, às vezes um segundo e ela já tinha deslizado o olhar pro chão ou para a moldura da fotografia da mãe, ao lado do abajur. Nem se atrevia a mexer nas fotos. Irene fugia para o quarto de banho. Chegava a deitar-se comigo, durante o dia e o despertador acordar-nos a ambos e ela dizer: Zé Miguel, não vás trabalhar hoje! Mas virava-se para o outro lado e ele empurrava-se para a confeitaria e ela foi melhorando, a Sara tinha terminado o quarto ano da licenciatura, já andava a alinhavar o que viria a ser a tese, o seu último ato de vida e de escrita. A Irene arrebitou. Deixamos de ir ao cemitério. Eu deixei de ir. Ela continuou a ir às escondidas, nas saídas da creche, na volta do mercado. E as dores afastam as pessoas, as conversas das pessoas, os olhares das pessoas, os suspiros começam a ser uma forma de conviver com os outros, sem que tenhamos que recorrer aos gritos de raiva, de dor, aos lenços de mágoas, aos pontapés às paredes e ao rumo das nossas lágrimas, às infindáveis questões que começavam "como" e "porquê" para se substituírem pela previsibilidade que o luto trazia. Que era um dia atrás do outro. Acordar cansado e incoerente. E perguntar-se se não tinha sido tudo um pesadelo. E constatar, todos os dias, que o pesadelo era esse lugar onde vivia e se arrastava. E era. O inferno privado da dor que o mantinha vivo quando tudo o que queria era dormir pra sempre. 

Naquele novembro, o pão deixou de ter cheiro, o pão quente deixou de pedir manteiga, deixou de pedir fome, deixou de ser feito da mesma maneira. Eu acreditei, em determinada altura, quando os meus funcionários me pediam encomendas ou tinha que reunir com eles e com o contabilista, que alguma coisa já não funcionava da mesma forma, talvez me visse não sendo mais padeiro, pensava que talvez pudessem olhar-me como sendo um estranho, um ausente, porque eu deixei de olhá-los nos olhos, deixei de querer, sequer, ver os seus rostos e comecei a sentir que, talvez devesse tirar umas férias ou passar o negócio ou fugir. Se a mim o pão já nem me sabia a pão, só a dor, comecei a acreditar que também os clientes quando os comiam, havia de lhes saber a mofo ou a outra coisa que não pão. Será que choravam? Será que comiam? A venda não tinha diminuído, as encomendas continuavam a chegar, mas cheguei a acreditar que talvez sentissem o mesmo que eu. Uma sensação de abandono a tomar conta de mim. A Irene estava deprimida, doente. Nem meia dúzia de meses da Ana ter partido, até ao primeiro sinal de derrocada foi quando recebemos a chamada do estágio da Sara. Um desmaio, uma fraqueza, uma queda inusitada, um desfalecimento imprevisto. Nas urgências, uma semana depois, tentávamos perceber, eu e Irene, porquê nós, porquê a nossa Sara. Havia esse porquê em mim e ficou a morar connosco. A Sara esteve dois meses internada. O prognóstico foi o que menos quis pensar. Só me refugiava na esperança. Vai curar-se. Quantos não vencem as doenças, porque não ela? E a Sara terminou a licenciatura, entre muita preocupação, ansiedade e esperança. Acredito que nós, eu e a mãe lhe devolvemos esperança, ainda que falsa, mas era esperança porque a queríamos intacta, porque eramos precisados dela, todos os dias, todas as noites, sempre, como injetáveis que não vieram a substituir as da dor, como a morfina.  Mas enquanto havia vida, havia caminho. Deixei de fazer noites. Passei o Manuel Varandas para padeiro principal e passei a dar assistência, vinte e quatro sob vinte e quatro horas à minha Irene, à minha Sara, e a mim mesmo só quando pressentia que ambas dormiam. E quando dormimos não dói, nem a ansiedade, nem a expectativa, nem a dor física, nem dor nenhuma. Quando dormimos é o doce alívio. E a minha insónia passou a presencial e noturna, a dor passou a protagonista dos dias e das noites e que ia eu fazer da vida, com a minha Irene de luto pela mãe e já a antecipar a luta inglória da Sara. A nossa. Comecei a passar por fases diferentes e, sem querer, a estar presente de corpo físico e ausente de espírito. E o contrário também se fazia verdade. A dor não é um corredor com uma saída para um dia claro. Parecia-me um corredor que afunilava a minha fé todos os dias, que encurralava a esperança, todos os dias, mais um bocadinho. O cansaço vencia-me. Porém, o sorriso mantive-o, pra elas. O apetite diminuiu e até as nossas plantas de casa morreram. A doença compromete a vida toda. Espreita-nos entre os livros e as tarefas, nos noticiários e nas conversas de hospital. Deixamos de viver. Começou a sobrevida logo após a morte da minha sogra e agravou-se na descoberta daquele cancro que nos havia de levar aos abismos internos todos. Passamos a fazer planos curtos, planos que não são bem planos, são mais formas de fugir ao que sabemos não controlar. Não podemos domesticar a vida. Nem o que sobra dela ou depois dela. E eu olhava os meus dedos, as minhas mãos que deixaram de cozer pão, de inventar doces, de abraçar com alegria, de apertar e saudar os clientes. De brincar e sorrir com os funcionários que eram uma espécie de família. O próprio Óscar passou de um cão feliz a um patudo triste. Tudo se altera ao redor de uma doença. Tudo se deprime na falta de fé. 

Começamos a frequentar o parque, sempre que podíamos. Íamos passear o Óscar. Mentira, íamos distrair a nossa dor. A Sara levava sempre atrás dela algum livro, mas dificilmente pegava neles. Ficava horas a olhar o lago. A mirar as pessoas que iam e vinham e talvez em monólogos íntimos que todos temos. Os amigos da Sara foram os primeiros a sentir a sua solidão. Através da sua ausência. Foi ela que a escolheu. Recusava-se a estar com alguém, sentindo não ser legítimo da sua parte comprometer a alegria dos outros com a sua falta de saúde. Acredito que quando estamos de luto, de luta, estamos de sobreaviso e de sobrevida. Queremos nos empurrar para a fé e quando nos deparamos com um obstáculo, deixamos nos desmontar e empurrar para o precipício mais próximo. Os suspiros, bem como o nó na garganta passam a ser tiques do dia-a-dia, acrescentam-se à nossa personalidade, querer olhar o outro e temer que o outro possa ler em nós a angústia e a culpa, o medo a e tristeza a crescerem, a lamber-nos o sangue, a esbranquiçar-nos a alma. O negócio continuava a ser assegurado pelos funcionários. Era o ganha-pão e mais nada. Deixara de ter metas e ambições e os funcionários continuavam a esforçar-se, a motivar-nos, mas sabiam que no nosso lar crescia um monstro selvagem que havia de tomar conta de nós. 

A Sara morreu no final da Primavera. Levou-nos a Primavera para sempre. Os nossos sorrisos e os nossos netos que nunca íamos conhecer. Os sonhos de uma vida foram com ela. Foi cremada, tal como queria. Continuei a lutar junto com a minha esposa, a lutar para viver, tendo tudo e sendo nada. Lembro-me que volta e meia saía de casa, quando a minha Irene tinha companhia e voltava, algum tempo depois, mais taciturno, mais submerso e entrava no quarto da Sara onde sabia ir encontrá-la. Passou a dormir no seu quarto com muitos tranquilizantes. Recusava ir aos médicos e muito menos a igrejas. Ficou revoltada com Deus. Eu também. Passei a ir ao psiquiatra. No início, dizia ser para ajudar a minha Irene, mas ao fim de um mês, já havia admitido ao psiquiatra que era por mim que lá ia, embora me fizesse falta um manual para me relacionar com uma mãe órfã de mãe e de filha que era a minha Irene, afinal de contas, a minha mulher. Essa estranha que vivia lá em casa. Às vezes, eu dormia com ela no quarto da Sara, na cama, encostada à parede, com as persianas sempre fechadas, mesmo que fosse dia alto, mesmo quando fazia sol. Porque os invernos haviam chegado na nossa vida sem aviso de se perpetuarem para além da conta. Os pais não deveriam sobreviver aos filhos!

E, acreditem, não sobreviveriam. Mantinham-nos a respirar e a chorar, algum mecanismo superior, algum malabarismo desconhecido, mas vivos, não!

Em poucos meses, o cancro da Irene havia de se manifestar. Levei-a a especialistas em Londres, como de resto à Sara, para segundas e terceiras avaliações. Tal como a Sara, a Irene desencadeou este processo rapidamente.  Eu sabia que com a minha Irene, associada à gigantesca perda da minha sogra, contribuíra a perda da nossa filha e ela se recusar a ir ao médico. A minha Irene partiu em Abril do ano seguinte. Seguiu os passos da filha. Uma cerimónia religiosa onde não havia fim de gente, crianças e pais e amigos. Não me lembro de ninguém, exceto do Quintanilha e de alguns parentes, exceto dos funcionários que, revezando-se, para não fechar a confeitaria, lá foram prestar as suas homenagens. Em menos de dois anos, eu estava só, eu que tinha uma família inteira e tudo começara pela Ana, a minha sogra. E chegara a ruminar no escuro do nosso quarto, comigo e com Deus se teria sido a Ana a levar as minhas meninas. Deus nunca se atrevera a mo responder.  Mas quem se atreveria a mendigar a minha sogra, que tanta falta fazia a todos que a conheciam? Eu também deixei de ir a médicos, a funerais, a cemitérios. Entreguei-me ao pão. Sou um homem diferente. Se a minha Irene me pode ver, nem me conhece mais. Já não sei sorrir, nem falar, nem sou coerente. Não durmo sem tranquilizantes. Não convivo com ninguém, exceto com os funcionários que se habituaram ao meu silêncio. Que não podem bulir muito com o meu sistema nervoso. Trazem-me tudo para ao pé de mim, o pequeno-almoço, o almoço, empurram-me para fora do trabalho, tentam, dentro do que lhes permito, fazerem-me mastigar uma esperança vazia a troco de um sorriso que não esboço. Já pensei em várias formas de aniquilar os dias, sem ser pela força bruta do trabalho e da obstinação. Um dia, hei-de descobrir o endereço das minhas meninas e se a vida continuar a dificultar-me as coordenadas para lá chegar, há-se ser brutal. E triunfal, não ter que sobreviver a esta dor. Uma espécie de vitória que almejo. Para ser honesto, será a grande vitória.  Um dia hei-de fazer as coisas à minha maneira. Enquanto isso, o Óscar empurra-me para o pé do lago, onde a Sara mergulhou as suas dores. A vida continua a esbranquiçar-me os cabelos, a alma e a turvar-me os pensamentos, mas um dia hei-de vingar-me dela. Só ainda não descobri como. 


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