Héctor Abad Faciolince

 




Excerto do livro: Somos o esquecimento que seremos


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"Não quero fazer hagiografia nem me interessa pintar um homem alheio às fraquezas da natureza humana. Se o meu pai tivesse sido um pouco menos susceptível, se se tivesse desprendido completamente da vaidade de sobressair, se tivesse refreado algumas vezes a sua paixão pela justiça, que às vezes raiava o fanatismo justiceiro, sobretudo no fim da vida, talvez tivesse sido mais eficaz porque, por outro lado, carecia de uma certa dose de tenacidade e de constância para concluir o excesso de tarefas empreendidas. Ele próprio reconhecia esse seu defeito e dizia muitas vezes: "Sou muito bom pai, mas muito má mãe", o que queria dizer que era bom para fecundar, para plantar a semente de uma boa ideia, mas mau no que dizia respeito a ter paciência para a gestação e criação.

Cometeu actos estúpidos, como toda a gente, meteu-se em movimentos absurdos, foi enganado por ser ingénuo, chegou a ser porta-voz de interesses alheios que o souberam manipular com bajulações. Quando se apercebia de que tinha sido usado, repetia sempre a mesma frase cómica e desenganada: "É que a mim, a inteligência apenas me serviu para ser estúpido." Envergonhava-se, por exemplo, de ter ajudado a meter no manicómio um cunhado da minha irmã mais velha, a Maryluz, que, uma noite em que estava mais exaltado, disse que andava a ser perseguido por mafiosos em Medellín. E muito menos o que dizia aquele rapaz, o Jota Veléz, que repetia como um louco que os mafiosos matavam e ameaçavam as pessoas, exportavam cocaína e marijuana, compravam mulheres nos bairros, pagavam a assassinos e a sicários... O meu pai confundiu essas verdades com o delírio de um louco esquizofrénico e o Jota foi levado numa camisa-de-forças para o manicómio de Bello. 

Quando se começou a ver que tudo o que o Jota dizia acontecia mesmo e que todas aquelas enormidades se iam confirmando de dia para dia numa cidade entregue à barbárie, o meu pai não teve outro remédio a não ser declarar-se louco a si próprio, de cegueira e de ingenuidade, e pediu desculpa ao Jota, o rapaz que denunciara o horror num ataque de lucidez que o meu pai confundiu com um delírio demente.

Também porque souberam alimentar-lhe a vaidade, envolveu-se num comité que procurava fomentar a amizade entre os povos da Colômbia e da Coreia do Norte. Até chegou a levar para casa os livros de Kim II-Sung e a participar num penoso congresso celebrado em Portugal e dedicado ao pensamento desse megalómano e sanguinário ditador do século XX. O mais grave é que o meu pai se apercebia de que nada daquilo fazia sentido, sempre que falava sobre os livros de Kim II-Sung dava gargalhadas de escárnio e de perplexidade, mas, ainda assim, embarcou nesse grupo, sabe-se lá por que razão se terá deixado levar pela corrente e não denunciar o opróbrio, convertendo-se em cúmplice de uma ditadura. De resto, nunca quis ir à Coreia do Norte, talvez por saber que, se olhasse mais ou menos de perto para a distância que havia entre as palavras e a realidade, não seria capaz de continuar a defender a patranha. 

Algumas vezes, nos últimos anos de vida, foi manipulado pela extrema-esquerda colombiana. Embora sempre tenha detestado a luta armada, chegou a compreender e quase a desculpar (embora não explicitamente) os revoltosos da guerrilha; e, como estava de acordo com algumas das suas posições ideológicas (reforma agrária e urbana, distribuição da riqueza, ódio aos monopólios, abominação de uma classe oligárquica e corrupta, que levara o país à miséria e à desigualdade mais vergonhosas), por vezes fechava os olhos quando eram os guerrilheiros a cometer atrocidades: atentados a quartéis, explosões absurdas. Sempre detestou, isso sim, o sequestro e os atentados terroristas contra vítimas indiscriminadas e inocentes. Como por vezes sucede com alguns activistas dos direitos humanos, via mais as atrocidades do Governo que a dos inimigos armados do Governo. Ele explicava isso de maneira mais ou menos coerente: é mais grave ser um padre a violar uma criança que um depravado. O sal é que não se pode corromper. Os guerrilheiros declaram-se fora-da-lei, mas o Governo diz respeitá-la. É verdade, mas, às vezes, quem segue por esse caminho pode perder facilmente o equilíbrio, e ele perdeu-o algumas vezes. O que não justifica, de todo, o seu assassinato, mas pode explicar, em parte, a ira assassina dos que o mataram. 

Lembro-me de que uma vez discutimos uma frase, talvez de Pancho Villa, que ele gostava muito de repetir: "Sem justiça não pode haver paz.", ou ainda: " Sem justiça não pode, e nem deve haver paz." Então, eu perguntei-lhe se a luta armada era necessária para combater a injustiça. Ele disse-me que, contra Hitler, era necessária: não era um pacifista incondicional. Mas, no caso da Colômbia, estava plenamente convencido de que a luta armada não era o caminho e que as condições existentes não justificavam o uso e o abuso da força por parte da guerrilha. Confiava em que, por via das reformas radicais, era possível transformar o país. Nunca, nem mesmo quando ficava furioso por causa das atrocidades cometidas pelos militares e pelo Governo, a sua fúria punha em causa o seu profundo pacifismo e, embora compreendesse o caminho seguido por outros, como Camilo Torres e José Alvear Restrepo, estava convencido de que essa não era a saída. Ele era incapaz de usar uma arma ou de matar, fosse pela causa que fosse, nem de apoiar com palavras os que o faziam, e preferia o método de Gandhi, a resistência pacífica, se necessário até ao supremo sacrifício da vida. "

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