Precisamos substituir o medo pelo prazer de viver
Aos domingos, o tempo parece ser magnânimo e condescendente com os mortais, abre alvíssaras à lassidão, ao descanso e aos aperitivos que são como aplicativos de prazer e consumo imediato, com os amigos. Ao domingo, juntam-se gerações, junto ao rio, um piquenique inesperado, planeado sábado à noite num " e se fossemos? eu frito rissóis e empadas, faço um arroz e levo umas batatas fritas de pacote, tu levas o vinho que o pai gosta, leva uma tarte de bolacha, daquelas do pingo doce, não te esqueças dos miúdos, leva os palitos com a nutela e os iogurtes para a tarde, e laranjas e uvas sem grainha, que a mãe há-de gostar de as comer olhando o rio, sem ter que cuspir as pevides, e olha, ali bem junto do jardim, tem a cafetaria, vamos aos gelados e ao café; ao domingo ainda se inventam desportos, quem chega primeiro ao rio, quem se atreve a despir a brancura e brindar a pele ao sol, os jet skies passam e revolvem a água, mas parece divertido, se ao domingo eu pudesse, também eu entraria de mansinho na praia fluvial cheia de godos gordos, de pedras macias e entrava no rio frio e a euforia dos miúdos que descobrem alegrias simples até no que inventam nas águas, nas areias indisciplinadas e descobrem tesouros que preenchem mais tarde, as semanas, reinventam-se heróis, depois dos tepecês feitos, depois de corrigidas as tabuadas, ver os gaiatos e os seus gritos, imaginar os seus sonhos, nas braçadeiras novas das promoções antecipadas do lidl, aos domingos há quem se recoste e se prenda ao passado, aos domingos passados, entre sussurros e ais, entre saudades dos idos e dos demais, do preenchimento das horas antes de mais uma semana em que vão ao centro do dia, combater o ócio e a desesperança numas cartas de sueca, no dominó e na discussão dos golos da jornada e dos jogadores, dos árbitros ladrões e dos treinadores, nos domingos recatados, há quem oiça um fado ou dois ou três para lhes matar o buraco da falta de altivez de vida, da rapidez com que as horas lhes comeram os sonhos, abandonam-se sem fastio, a ver correr os cães no tapete macio da relva, a esgueirarem-se por entre os arbustos e a descobrirem animais por debaixo dos torrões, a ladrarem o território como se fossem donos desse pedaço de jardim e os donos riem, divertem-se e apreciam as suas personalidades, que o rex é da família, mais do que a própria família, um amigo de abraço, porque pela vida apressada, existe o cansaço e as redes virtuais, onde já só se encontram por lá, a fotografia do Zé com a prima, do Manel Cornejo com a Maria, da festa da senhora da agonia, do prior e do secretário, dos foguetes que lhe estragaram o efeito do indutor do sono, do dono da tabacaria que emigrou, quem diria?, dos holofotes ao vereador, o senhor vereador passou com a esposa, parecia levar uma dor, mas talvez seja eu a ler mal aquele desvio, talvez seja espondilose ou um jeito mal dado quando acordou de repente, quando viu pela frente as notícias diárias da tv, que nem se sabe porquê, se alimentam polémicas de homens sérios que se sujam nos corredores do poder, mas pra quê?, o senhor vereador até sabe porquê, que os privilégios não são pra todos, não aleijam os que se beneficiam deles, e o senhor ex governador civil foi visto na costa da Caparica com uma amante, quem diria?, que todos sabiam da sua dedicação à sua esposa legítima, mas isto de viver parece ter dias contados e se a gente não se alegra, se a gente não se obriga a sorrir, acabamos contaminados pelas desgraças alheias, pelas palermices alheias, pelas doenças contagiosas da ignorância e da blasfémia, e o piquenique que se prolonga, que o S. Pedro está bem disposto, serve umas azeitonas, uns panachés e uns tremoços e vamos falar de motos, da morte do piloto famoso, do rali, o que levou o nome da nossa terra veloz, velozmente às bocas do mundo, coitado, a eternidade nunca sabe esperar, nem para nos despedirmos, se ao menos fossemos avisados de que fulano de tal se vai aposentar da vida, na crueza das notícias virtuais das redes, lá passou a sua fotografia, no anúncio da agência funerária, e falamos do Tejo e dos espanhóis, da lavoura e dos caracóis, dos lisboetas que sorte a deles, fazerem fronteira geográfica com as escapadelas para o Alentejo, para os montes, para o algarve nos fins de semana prolongados, e a vida despe-se connosco, para mais uma semana do mesmo, das polémicas, dos golos, das greves, da guerra, das guerras e da mediatez dos nossos atos. Amanhã é dia de comer outra vez, na tasca do português, no fim da tarde, um copinho do verde e uma sande de couratos. Afinal, domingo é quando um homem quiser. E uma mulher não se importar.
Comentários