Medir pilinhas

 


Ou da vã arte de esgrimir ódios de estimação!

Ainda bem que os nossos avós e pais conseguiram lutar pela nossa liberdade de expressão. Não fossem eles, a liberdade era algo penhorável, quiçá, negociável que faria parte do sistema de cunhas. Lê-se de tudo. Faz-se de tudo, numa impunidade que só a liberdade de expressão permite. Outros dirão o mesmo da minha opinião e da minha página. Viva a liberdade de expressão. 

A propósito da paragona escolhida de mais este texto de verborreia minha, eu, Cristina Guedes, sou uma mulher. Desse ponto de vista, não me posso comparar com homem nenhum. Não tenho pilinha. Tenho pachacha, pombinha, vagina, cona, whatever you might prefer. O vocábulo não é importante, o resto sim. E isso, de ser mulher, não me diminui e nem me desencoraja para dizer o que penso, num mundo clara e maioritariamente habitado por machistas (as próprias mulheres o são, quando continuam a educar os seus filhos como senhores feudais e as suas filhas como escravas da casa e da família) que são aprendizes de feiticeiros ou ainda colaboradores de um inferno de conhecimento, no qual se digladiam por um minuto de coiso. Deixem-me chamar coiso e vocês vêm o coiso como vos melhor aprouver. Se estiverem pra aí virados. Ouvi dizer que a luz chega a todas as mucosas. Todos temos mucosas. Dizia que sou mulher e hei-de continuar a dizê-lo. Precisamos ser muitas a dizê-lo pra que nos notem enquanto personas ou seremos eternamente diferenciadas e pejorativamente avaliadas (e diminuídas pela falta do apêndice) como meros acessórios de propagação da espécie. Sou mulher, mas licenciei-me em Psicologia.  A licenciatura não me define. Porque mais do que psicóloga, sou mulher, persona e existo. Ser não é ter. E o que eu tenho não me define também. Eu tenho a capacidade de dizer barbaridades e parece que posso, graças à liberdade que os meus avós e pais me garantiram. Isto que partilho convosco vem no seguimento da leitura de uma crónica lida sobre o autor António Lobo Antunes. O escritor. Não António Lobo Antunes, o psiquiatra. E quem é o António Lobo Antunes? Outra persona, um ser, muito mais que um psiquiatra. Um escritor, muito mais que o psiquiatra. E ser um bom ou excelente escritor não é debitar verborreias como eu o faço. E como um autor que li, faz. Ser escritor, mais do que vender livros, é dizer a vida no que escreve. É pensarmos na composição do nome do autor e automaticamente nos lembrarmos das suas obras, personagens e temáticas e não nas entrevistas dadas por um ser humano, como nós, que tem ego, que usa de estratégias de coping para se defender de uma opinião pública e de uma sociedade ostensiva, severa e fácil nos julgamentos alheios. A pimenta no cú dos outros parece ser o refresco no meu, de um eterno e irremediável estado de atropelo.  Ninguém é mais que ninguém, porque tem canudo, porque tem dinheiro, porque tem um porsche à lá pata ou porque tem seja o que for, u name it. Desculpem-me os estrangeirismos, mas é que, enquanto cidadã do mundo, considero que há expressões legítimas que definem sentimentos e estados de alma do que os que me ocorrem na língua mater. 

Eu nunca li nada de Eugénio Lisboa. Perdoem-me a ignorância. E para ser completamente honesta, talvez não tenha sido por ignorância. Talvez seja porque o autor não foi devidamente divulgado. Isto que escrevo é póstumo à vida do autor que, infelizmente partiu neste Abril. Andei na procura dessa entrevista que ALA deu, onde cometeu despropósitos acerca de Fernando Pessoa. Por conseguinte, Eugénio que, em defesa de FP e de muitos outros autores que não primavam pela fodilhisse, seguiu o exemplo do meu cronista favorito e, não numa entrevista e muito menos num tête â tête, com o próprio, desferindo tais golpes num Jornal de Letras conceituado. A parangona que me obrigou a ler a dita cuja crónica-texto de Eugénio Lisboa era esta: O único homem que mandou foder António Lobo Antunes. E quem escreveu a parangona não foi EL. E eu gostaria, não em defesa de Lobo Antunes, em primeiro porque ele se deve estar nas tintas para a opinião que possam ter dele, e em segundo, porque Eugénio Lisboa já faleceu, dizer que não obstante as nossas opiniões, todos podemos dizer barbaridades, sem que elas diminuam quem somos que é mais do que temos, mais do que o nome, do que o apelido, do que o que quer que seja. Um homem é mais que tudo isso. Todos temos ego, todos somos sensíveis e possuímos suscetibilidades que nos fazem, por lapso, stress e outras barbaridades mundanas, cairmos no lugar-comum de um selvagem. E isso, por si só, não sustentará quem somos, não diminuirá quem haveremos de continuar a ser. Somos todos humanos. Eugénio Lisboa já não. Nem Fernando Pessoa. Nem Graham Greene, nem Jane Austen ou Emily Dickson. Todos estes autores já partiram e não se podem defender. A obra que deixam falará por eles. Nós sim, continuamos por aqui e não será por causa dos nossos erros que seremos diminuídos, pois que fazem de nós precisamente incompletos na perfeição, ou se preferirem, demasiado humanos para atingirmos a perfeição. Ambos eram autores na escrita. E eu gostava imenso de ter acesso a essa entrevista, pois através dela, poderia tentar entender o que fez ALA dizer o que disse (se o disse) e se não houve, da parte do entrevistador nada que o levasse a explanar daquela forma. Não somos todos iguais e quem lê ALA sabe que o autor conhece o mundo e as pessoas nas suas virtudes e fraquezas, mas também ele é vestido dessas indignidades e genialidades que nos torna quem somos. 

Sempre houve e sempre haverá "rivalidades" ou "diferenças" que nos particularizam ou nos tornam semelhantes. Acontece que as rivalidades nada mais são do que fragilidades de um ego que se deixa atingir pela comparação, pela exaltação, pela diminuição ou soberba de outros egos. E também isso faz parte de quem somos. Selfs na procura da sua melhor versão. O que não nos torna melhores é apontarmos um defeito no outro e fazermos o mesmo, e foi isso que a meu ver, Eugénio Lisboa fez, independentemente de ser um autor produtivo, entre autores. No lugar de EL, talvez tentasse uma aproximação física ou virtual, uma vez que se torna acessível ou mais acessível aos autores entre si comunicarem, não nunca sem estudar o que faz um ser humano diminuir outro e muito menos diminuí-lo por determinada alarvidade e ele próprio cair no erro do mesmo. 

A crónica que li de EL que faleceu recentemente fica aqui, enquanto eu continuo à procura de ouvir e ler as entrelinhas desta famosa entrevista que deu origem a tal crónica, muito bem escrita, com sarcasmos e toques de humor jocoso, não obstante, aproveitar o erro de um ser humano para poder mostrar, afinal, o que pensa sobre ele, ao invés de lho dizer pessoalmente. 

E tal como entre autores na escrita, também estas rivalidades pequenas e mesquinhas se tornam trivialidades em todas as outras áreas laborais. Existe desalinho entre psiquiatras e também, e ainda mais notório, entre psicólogos e psiquiatras, entre professores e entre professores e professores doutores, entre engenheiros e entre engenheiros e arquitetos, aliás em todas as áreas onde existam homens. Não nos acrescenta, ao contrário. Embora tenhamos que ter noção que nós não somos o que dizemos que somos, nós somos o que fazemos. E por muito que para EL o escritor psiquiatra seja um proscrito porque teve a veleidade de ter uma opinião menos consensual, o escritor António Lobo Antunes não generalizou para o tanto de escritores virgens, gays etc que proliferam no mundo das letras, das ciências e por aí vai. Eugénio Lisboa fez mais e melhor, em ataque do erro de LA, EL contra-ataca o cronista, como se disso dependesse a sua própria vida, digo escrita e como se não bastasse, deixou tal crónica como obra no Jornal de Letras que mancha, a meu ver, a sua credibilidade para uma ignorante como eu, no que diz respeito a ter curiosidade de ler a sua obra. Friso, no entanto, que não me deixo enlevar por isso e que até desperta, ainda mais a minha curiosidade no que se refere a EL, sobretudo por ter descoberto que ele era especializado em José Régio que eu prezo muitíssimo. Os homens são os homens e sempre haverão de medir pilinhas. E se um homem é penalizado por dizer o que pensa sobre Fernando Pessoa, que é um génio e marca a nossa literatura, tal como Camões, não deixa de ser verdade, para mim, que muitos textos desse autor, bem como de Camões me conseguem adormecer. Nunca adormeci com António Lobo Antunes. Se eu fosse editora de um Jornal de Letras, não daria espaço a uma crónica que fosse onde o objetivo fosse crucificar alguém. A não ser que fosse ficcionada e seria lida como obra em si mesma. Na minha página eu posso, nas revistas cor-de-rosa que parecem ter nascido com esse propósito, idem, como editora, deixaria a desejar. Ou estaria a alimentar polémicas privadas que serviriam a interesses próprios. E a meu ver, não se deveria misturar literatura e artes várias com polémicas de vida privada. Ou lapsos circunstanciais, em tudo humanos. Como parece ter sido o caso de um e, depois a esse propósito, do outro. 


Aqui deixo a crónica, assinada por EL e referente a este episódio pontual sobre o escritor nada pontual, ALA.


"“Foder e escrever

Peço, desde já, que me perdoem o tom desenfastiado desta prosa, a começar pelo título: paráfrase libertina de um solilóquio célebre. Vou usar, como verão, vocábulos desataviados ou mesmo crus: o culpado disto tudo é o escritor António Lobo Antunes que, numa entrevista recente – das muitas que ele não gosta de dar mas vai dando – sugeriu o mote, ao afirmar o seguinte, referindo-se a Fernando Pessoa: “Eu me pergunto se um homem que nunca fodeu pode ser um bom escritor.” Não é a primeira vez que o autor de Memória de Elefante nos serve este mimo.

 Provavelmente, ao tê-la, gostou tanto da ideia, que não se cansa de no-la servir, faça chuva ou faça sol. Reajo a ela, não tanto pela crueza vicentina do tom (e do glossário), como pelo facto de me não parecer cientificamente sustentável. E, neste ponto, faço apelo ao que, de ciência, ainda reste na cabeça do outrora psiquiatra Lobo Antunes.

Antunes propõe, em suma, que a falta de tesão de Pessoa não é compatível com o equipamento profissional de um bom escritor, ou, de maneira menos crua: a castidade não leva à criação poderosa. Ora bem: quando se põe, em ciência, uma hipótese de trabalho, esta só se mantém de pé, até ao preciso momento em que um novo facto conhecido a vem desmentir (ou falsificar, como diria Popper). Ora o que não faltam são factos que perturbam, abanam e fazem desmoronar a atrevida asserção de Lobo Antunes – os tais factos que Ronald Reagan apelidava de “estúpidos”, porque contrariavam as suas fantasias primárias.

Isaac Newton, incontestavelmente o maior cientista de todos os tempos, morreu virgem ou, se Lobo Antunes assim preferir, não consta que alguma vez tenha fodido – o que não o impediu de sondar, como ninguém, os enigmas do universo. Também não creio que um dos maiores artistas e inventor prodigioso de artefactos tecnológicos – Leonardo da Vinci – tenha fodido por aí além. Estes dois exemplos, só por si, bastariam para foder irremediavelmente a hipótese científica do ex-aprendiz de psiquiatra doublé de ficcionista, que dá pelo nome de Lobo Antunes. É certo que nenhum destes personagens que citei é, exatamente, um escritor e Lobo Antunes referiu-se apenas à incapacidade de um casto escrever boa literatura. Vejamos, então, do lado dos escritores. Os exemplos – os tais factos “estúpidos” – não faltam. Henry James, por exemplo, não consta que alguma vez tenha ido para a cama, com menina ou menino. Walpole bem quis, um dia, seduzi-lo para o seu leito (desconfiado que andava de tanta reticência mais própria de solteirona ressequida), mas o autor de Portrait of a Lady recuou. Houve até uma mulher que se suicidou por ele a ter rejeitado ou não ter descodificado bem os passes que ela lhe andava a fazer, mas nada o levaria a fazer aquilo que Lobo Antunes considera fundamental para uma fecunda vida literária: foder, nem que seja só um bocado. James deixou uma obra monumental e Graham Greene só se lhe referia, chamando-lhe, com uma vénia, “the Master”, mas Lobo Antunes é de opinião que a obra do grande ficcionista americano ficou completamente fodida por o seu autor não ter fodido. Jane Austen, que conseguiu o milagre de agradar simultaneamente ao grande público, aos cineastas e aos “high-brows” universitários, também não fodeu. Viveu solteira e virgem e produziu, no meio da mais impertinente castidade, uma meia dúzia de obras-primas. Assim ajudando a foder consideravelmente a hipótese antunesina. John Ruskin, que tão bem escreveu sobre arte, merecendo até a glória de ser traduzido para francês por Marcel Proust – que Lobo Antunes tanto e com tal exclusividade admira! – também não chegou a foder, embora tenha tentado: na noite de núpcias, os pelos púbicos da noiva – coisa que, pelos vistos, nunca tinha contemplado – de tal forma o horrorizaram, que deixou a pobre rapariga intacta e nunca mais repetiu a tentativa. Fodido, não é? A poetisa americana Emily Dickinson ficou igualmente para tia, o que justifica, segundo Antunes, uma reavaliação da sua poesia, à luz de tanto não foder. Por outro lado, Edgar Poe, o da literatura policial – com o inesquecível Dupin, ínclito precursor de Sherlock Holmes – mas também o mago da literatura fantástica e de horror – que Baudelaire admiravelmente traduziu – e o poeta romântico que Pessoa verteu para português, Poe, dizia eu, cometeu o que Antunes classificaria como o mais hediondo dos crimes: casou com a priminha de 13 anos, Virginia Clemm, sem ter chegado, porém, a fodê-la. Nem a ela nem a nenhuma outra, que se saiba. O grande poeta Gerard Manley Hopkins, padre, ficou também casto (não sei se por ser padre, mas a verdade é que ficou), o que obrigará, em breve, a organizar-se todo um colóquio douto, para reavaliação da sua obra: quem esforçadamente não fode, escrever bem não pode, garante Antunes a quem o queira ouvir.

Também o emérito Yeats, um dos grandes da poesia do século XX, permaneceu casto até aos trintas e, durante este período de espartano “no fucking”, escreveu e publicou bastante poesia. E, já agora, para terminar, desconfio bem que o nosso ternurento António Nobre, precursor indiscutível da nossa poesia moderna e “a nossa maior poetisa”, segundo a perfídia mansa do grande Pascoaes, também não era particularmente dado às fornicações que Antunes considera fundamentais ao ato da escrita.

Por fim, ainda na referida entrevista, o autor de Os Cus de Judas dá a Virgílio o que é de Horácio, quando alude desastradamente às odes de Ricardo Reis: assim fode, sem apelo nem agravo, a erudição vigente. É caso de se dizer que, se quem não fode escrever não pode, não é menos certo que quem pouco manuseia o antigo não logra ver além do postigo.

Abrégé do texto acima, com tese (minha): quando se trata de escrever, tanto faz foder como não foder. O importante é ter que dizer e saber o modo de o fazer. Simples? Eu diria mesmo mais: fodidamente elementar”

Eugénio Lisboa 

escritor, professor e ensaísta "Jornal de Letras"




E vemos nesta crónica despojada da vida alheia que um autor, para chicotear um escritor vivo e defender um poeta morto, anda por aí, falando da vida sexual de vários autores, como se estivesse a escrever a sua mais bela obra, um comportamento típico dos "escritores das crónicas sociais das revistas cor-de-rosa". Não achei que a opinião do cronista ALA estivesse correta, mas o comportamento do autor EL deixa mais a desejar. 
Como alguém disse (Freud, Lise Bourbeau), quando Pedro fala sobre Paulo, sabemos mais sobre Pedro do que sobre Paulo e, francamente, não era necessário! Ou, se calhar, talvez houvesse um ego para lidar.




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