Sérgio Mayor de Andrade




 “Desde que a Agustina decretou que o Porto não é um lugar, mas um sentimento, que se tornou oficial que nós portuenses (por nascimento ou adoção) não temos cidade. Nós apenas vivemos num cantinho do nosso coração porque é lá que o Porto está. O exílio para nós não tem sentido. Não é só filosoficamente inexequível. É fisicamente impossível. Nós não vivemos na cidade, antes esta vive em nós. É o nosso hóspede eterno. Estas ruas não existem. São feitas de nevoeiro e de granito. São feitas de sonhos e memórias. E as memórias são fantasmagóricas como o nevoeiro, e, contudo, têm a consistência granítica do tempo. E talvez nós também não existamos. Talvez nós não sejamos mais que o sonho desta cidade. Há ambivalência. Também nós somos feitos de nevoeiro e granito. Tudo o que sei é que quando caminho por estas ruas não ando só pelas ruas. Ando pelas décadas. Ando pelas memórias. Ando na fina linha entre a minha experiência pessoal e a coletiva. E cada batida do meu coração está em sintonia com cada pedra, com cada fantasma do Porto. E cada rua, cada viela resplandece de forma baça com cada lágrima, cada riso, cada amor, cada gota de sangue, cada morte, cada vida de toda a gente que vive nesta cidade, em uníssono, em simultâneo, a cada instante dos séculos. Um galaico. Um legionário romano nas margens do rio. Um suevo nas fronteiras do seu reino. Um mercador árabe. Um vassalo medieval. Um artesão de guilda renascentista. O infante D. Henrique. As pessoas que morreram na ponte a fugir das tropas de Napoleão. Um soldado liberal de D. Pedro IV. Um mercador de vinho oitocentista. Camilo preso nas masmorras do preconceito Victoriano. Uma prostituta a percorrer as mesmas ruas em 1890, 1950 ou 2010. Ou o hipster de género fluido que te serve a cerveja artesanal em 2030. Somos todos a mesma pessoa. Pelo menos eu vivo e sinto o Porto assim. Algures no fim do mundo, algures no fim de mim há um cofre e esse cofre tem joias e as joias contam uma história. E por vezes a mão do tempo, a mão da ganância ou a mão da circunstância roubam uma joia. E nem sempre eu noto. Mas eventualmente começo a sentir a falta, e é ali que me sinto lesado e incompleto. Porque sinto a minha história do Porto lesada e incompleta. E quando isso acontece não consigo dormir, velar, viver ou morrer em paz. Porque toda a minha existência está abalada. Não só este presente onde vivo, mas o passado onde nasci e o futuro onde assombrarei estas ruas, caminhando sem rumo nem destino nem fim pelos Aliados, e pela Boavista e por Cedofeita e pela Lapa e por Ramalde, sabendo que este é o único Céu que preciso.’


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