A violência como destino





O silêncio da noite pesa sobre as casas, amarfanhando-as, tornando-as sobreviventes. O olho sinóptico vigia os corredores cor do trigo nas paredes onde se perde a noção da existência. Os sons do silêncio estalam as paredes inchadas de água, derretem o gelo e incendeiam os cenários aparentemente turísticos. O mundo tornou-se numa bola de fogo, onde a única coisa que permanece é o olho sinóptico que vigia os espaços, destruindo as barreiras, para ampliar o som e a visão sobre os iniciados. Eles caminharam um dia sobre as cidades selva, inocentes. As tribos urbanas foram instrumentalizadas, e são agora marionetas entupidas de químicos que adormecem e acordam às três da manhã e caminham ao wc, depositam as águas químicas do terror e da ansiedade e retornam às camas, olham-se ao espelho e fogem ao seu próprio olhar e vagueiam com os seus ouvidos pelas paredes, as mãos em forma de funil, tentando extrair mais sobre o terror sintético fertilizado nas selvas já semeadas pelo homem angustiado de enigmas. A pílula do terror é vendida fora da máquina registadora, longe dos olhares atentos e o som do silêncio veste-se de ruídos familiares para propagar e fazer crescer essa vertigem que toma conta do mundo enquanto ele dorme. Os figurantes e os protagonistas vestem personagens nos filmes uns dos outros. Trazem sorrisos amarelos, os olhos cheios de cansaço e os ouvidos doentes. Procuram no final do dia um cenário de paz, irremediavelmente perdidos, irremediavelmente frustrados porque o seu mundo foi violado, romperam em diques de ferrugem e espalharam insetos pelos labirintos auriculares. Às vezes o silêncio enche-se de zunidos dos mosquitos, tortuosamente ampliados para destruir os espaços de paz que comprometem os sonhos humanos.
 Predominam os lugares-comuns do tédio e do enraizamento. Estão programados para aceitar, não importa o quê, nem o como, nem o quando. Aceitar passivamente. Mutantes vestidos como humanos, vestes iguais, esvaziados de conteúdos positivos, impera a voz do som da ausência da humanidade. Vagueiam com pernas e braços, com pensamentos e vontades exaustas, empurram-se para obedecer. Para onde foram despejadas as suas vontades e sonhos?
Os iniciados caminham para dentro dos seus corpos, habitando-os, para que possam ver os campos de feno e trigo extensos, para que ousem despertar os sentidos, o olfato, para que se atrevam a olhar o que esqueceram, quando dispõem na cadeira dos quartos as vestes iguais que os torna semelhantes a humanos. Eles fazem-nos despertar dentro do sonho e fazem-nos ver a esquizofrenia dos cenários e dos seus próprios atos, despidos de empatia. E nas esquinas escuras da selva humana, veem cadáveres que se empurram para o aniquilamento da loucura que os persegue, as doses de veneno que engolem não lhes permite ver que são mutantes em busca da esperança. E adentramos nessas selvas como se entrássemos noutra era, noutro mundo, onde se fodem contra as paredes grafitadas, onde se impregnam dos ofícios da robotização, submetendo-se a eles e a outros às sevícias primitivas do esquecimento, da anosmia dos cheiros da infância, desprovidos da sua humanidade. Os iniciados entram nos seus corpos cansados e tentam remendar as fraturas da sua falta de civismo, da sua inoperância na construção de sonhos. As vísceras viciaram-se no despropósito e agarraram-se como árvores ao entorpecimento, como se tudo assim fosse, desde que entraram fractais no caminhar das épocas. Eles não falam, só sabem calar da violência da qual são testemunhas e vítimas silenciosas e cooperantes, tal é a abdução do self. Substituíram os amanhãs pelos ontens e aí vivem, perdidos, como os insetos rodeando as lâmpadas, ofuscados pelo devir que sentem como golpe nos corpos físicos e mentais. São escravos dessas visões apocalípticas de fim dos tempos e obrigam-se a si mesmos, se diante do espelho, a verem-se como insurgentes e visionários de uma decrepitude que os cega e os mantém viciados ao sistema. Os iniciados erguem-lhes os braços e as vontades, para que possam escolher o caminho da construção. Não desistem deles, nem eles parecem desistir dos que os mantêm nessa alucinação de incoerência e despropósito. Um dia, a alva manhã alocará os seus corpos para uma vala comum, se persistirem em, tal como morcegos, percorrer as madrugadas da violência escolhida. 

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