Aos domingos, é dia de pimenta na língua

 



A liturgia passa-lhes de esguelha, a ruminarem o que veste a viúva e como as filhas cheias de tatuagens e piercings se parecem com o gado que elas apascentam. O sermão é gelado, não porque não tenha o apelo da palavra do Deus que elas gostam de dizer que amam, mas porque escolheram ser da raiz do mal. 

Reparam em tudo o que os outros fazem, nos trejeitos, no bocejar, nos olhos esbugalhados de pecado, nas vestes impecáveis, como se fossem modelos que elas só veem pela televisão. Os importantes da televisão sempre com bons adereços e depravados em termos de ações. Pecadores e merecedores da cobiça alheia. As beatas são como bolas de naftalina, fedem ao longe e acocoram-se nos bancos celestiais, pedindo perdão por seus feitios, mas consideram-se isentos do pecado do mundo. E no final da liturgia, quando já podem sair ao adro e olharem sem estarem a pecar na casa do Senhor, fazem-no sem descrição nenhuma, dizem mal da nora e dos genros todos, sobretudo das noras e genros dos outros, da sua língua, em termos espirituais sai veneno e dos seus olhos faíscas, tal a inveja que lhes custa dominar. Mostram os seus netos vestidos no traje de comunhão, já apertado, mas impecável, para serem olhados como se se aproximassem dos demónios que cobiçam. Sim, que o meu neto vai ser doutor, mãe, não é doutor, é engenheiro, porra, doutor e engenheiro são a mesma coisa, são uns senhores a quem os outros consideram importantes, e são muito inteligentes. O meu foi mimado como Deus mandou, sempre soube que ele ia ser importante, que ia fazer obras que só os doutores fazem, mãe, é engenheiro, pois que é a mesma coisa, nem todos podem ser doutores e mesmo os filhos dos doutores ficam aquém do meu neto que é um engenheiro doutor, que me anda lá longe a estudar muito e aposto que é o mais inteligente de todos. Vocês ouviram dizer que o Padre Miguel vai ser castigado? Eu não sei o que ele fez, mas ainda bem que Deus não dorme. Deus só dorme para as línguas viperinas e maledicentes, para os olhos invejosos e para a lascívia com que falam dos demais. As beatas gostam de mostrar que são profundamente religiosas, que os credos lhes saem da boca com uma tal santidade que nem sabem como Deus, com elas vivas, não as sobe ao altar, para o povo as adorar. Lavram a língua na vida dos outros, como se lavrassem campos de trigo, ceifam a vida dos outros como se fossem ervas daninhas que as incomoda só de as olharem. São verdadeiramente o oiro do diabo. Nestas terras pequenas, a mente tem mais oxigénio, mas também tem mais ardil e vileza e elas não perdem pormenores de somais importância, enquanto falam de a. Nada disso. Já estão a olhar b e a preparar os dizeres do que lhes parece, naquelas mentes diminutas, alimentadas a tronchudas e água rás, o fel que produzem é de primeira qualidade. 

Aos domingos, quando recebem visitas, enchem-se de brio, limpam as unhas de coçarem os ouvidos e retirarem a cera, de coçarem o olho do cú, mas tomar banho gasta-lhes a pele e Deus nosso senhor sabe o quanto elas poupam em água. As beatas são poupadas, todos os domingos usam o fogo exterior para meterem carne e arroz ao forno, já sem resíduos de gado a tapar, mas com as mesmas intenções. Arrumam as mesas com uma toalha mais alva que as suas cabeças, retiram as remelas dos olhos enquanto partem o pão de regueifa e esperam que os genros se sentem, depois dos martinis com cerveja e do chouriço, que lhes abriu o apetite para o prato principal. As beatas são as figuras dominicanas das aldeias, são as últimas a sentar porque são elas que servem o caldo e os assados, as saladas e os cestos de pão com remelas, que empilham as garrafas de vinho e de sumo para os pequenos, que preparam os pratos da sobremesa habitual de sopa seca e entre um bocado de carne com osso que comem entre as mãos, coçam a cabeça e dispõem a gordura animal pelos fios capilares e fazem brilhar as nucas e os narizes e nunca, jamais se calam. A não ser que haja um grupo de dois a falar baixo, aí elas escutam, fingindo estar ocupadas com um ato de contrição ou com as saladas extra a colocar na mesa. São hábeis a fazer contas, são ainda mais hábeis a lavrar a vida coletiva e a opinar superlativos para desferir golpes nas gentes alheias, nos vizinhos de fora, e se as ouvem, erguem-se, como se estivessem no púlpito papal e lançam as barbaridades como se fossem pérolas. Os varais ficam apinhados de olhos atentos e bocas enxutas, que escutam os murmúrios e nas costas dos outros veem como se tricota as costas deles mesmos. E enquanto levantam a mesa que dispõem, depois de sacudir os restos, em pilhas no chão, de uma bacia repleta de água com sabão, vão zimbrando os nomes das pessoas que esqueceram de falar, porque correm todos os personagens, e ficcionam a vida dos demais como se se estivessem a ver no velho espelho que têm atrás da retrete, bem junto dos jornais cortados em pedaços para limpar o rego, a sua própria fronha. Têm muito dinheiro, mas não para água e menos ainda para papel higiénico. E se não sabem ler ou não o querem fazer, porque lhes custa ler atualidades, o seu rabo fica bem informado. 

As beatas adoram fazer liturgias e parecera, a quem está de fora, que essas imaculadas almas se insurgem através da ética e da moral alheia para praticarem todas as iniquidades que não mostram ao mundo. Adoram dar conselhos sem que lhes peçam e gostam de ficar bem nas fotografias, não por serem vaidosas, mas por acreditarem que zelam pela ordem religiosa pública. Elas não conhecem a vida, exceto a pequenez das vidas em que vivem, nos lamaçais que alimentam da vida alheia. E a gente que as observa vai aprendendo a evitar o cultivo de amizade com tais personagens beatificadas, porque só se junta quem se parece.

E nos umbrais que sabemos existir, uma fila extensa vai ganhando forma e, só do outro lado, na total escuridão se apercebem que os seus semelhantes continuam no caminho da desevolução, isto é, desenvolvendo o mais do mesmo dos que lhe precederam, sem nem lhes passar pela cabeça, tão cheia de merda, que o caminho é ao contrário, para a frente, adiante, porque todas essas vidas erráticas já foram desinfestadas e já encontraram uma outra forma de se purgarem, de se limparem, na escolinha celestial, a fatídica que nos limpa o sebo que carregamos para todo o lado, semeando o mal a cada lugar, a cada ser que tenha o infeliz percalço de as encontrar. 

Aos domingos, as mentes esvaziadas de sabedoria, enchem-se de volúpia, a lascívia dos pobres de espírito, pós celebração dominical, pós a retirada das roupas de estimação, pós as hóstias mal tragadas, e finalmente, voltam a encher-se do esterco que semeiam o atraso civilizacional. E não há nada pior que o humano instintivo e oco. Num regresso eterno à promiscuidade do Paleolítico. 

E nós vamos aprendendo que, por mais domingos que corram, por mais tempo que passe, a verdadeira estupidez mantém-se enraizada nas beatas de igreja e nas beatas de todo o lado. E é preciso dizê-lo, ler em voz alta, as vidas escolhidas por estes seres que ao tornarem indignas as outras pessoas com quem convivem, tornam-se ainda menos dignas de se perpetuarem. Mas não se enganem. As beatas reproduzem-se, é coisa que vai de pais para filhos, de filhos para netos e por arremesso, todos os parentes e amigos que se cruzam com esta classe social que tem o nome de ignorância e perfídia. 

Eu aos domingos e não só, dedico-me a ler as pessoas. E a praticar o perdão com o respetivo afastamento obrigatório. O tal que me foi concedido. Noblesse oblige. 

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