Da equação do amor

 



Hoje é dia dez de abril. Dia da partida do meu pai. Daqui a um mês, exatamente, vou recordar o dia do seu nascimento. Ele ensinou-me a amá-lo incondicionalmente. Não porque me disse: - Filha, deves amar-me incondicionalmente, estando aqui ou noutro plano. Não. Porque nos sete anos que vivi com ele, foi um pai de atitudes e ações e semeou em mim o amor que ainda lhe tenho e que há-de permanecer. 

Quando foste tu a partir, de uma outra forma, bem depois do meu pai, nada negativo nos distanciava, ao contrário. Desde o dia em que te conheci, lá no Chaplin, o restaurante da tia Augusta até ao dia em que tive de deixar-te partir, só semeaste dentro de mim amor incondicional. Que é o que nutro por ti, desses amores que resistem muito para além do tempo. Tal como ao meu pai, medi-te a nobreza de carácter, a entrega e a devoção, a ternura e a beleza que te estão inerentes, a inteligência e todos os atributos que nenhuma página ou livro podem conter, porque vocês vão muito além do tempo. A minha lua em gémeos faz-me racionalizar o porquê. Porque tremo quando te vejo, tantos anos depois? Porque transbordo de alegria? Porque me sinto em casa? Porque guardei em mim todos os gestos, porque te apreendi o todo e porque te elevei ao patamar dos deuses?

Preciso de ir ao avô Rodrigo e à avó Bina. O amor deles foi amor assim. Os pais não queriam que casassem um com o outro, todos ou os que detinham poder emocional sobre eles, à época, não queriam esse amor. Ele rompeu tudo, foi maior e cresceu e sobreviveu nesta vida até que o avô partisse e depois, nem meia dúzia de anos depois, partisse ela. E ainda assim, esse amor deles ficou cá, em todos os que se lembram e conhecem o amor que viveram. E o meu amor por eles sabe que os honro quando estabeleço o reconhecimento da contribuição e da partilha desse amor comigo. O avô contemplava o futuro nos olhos dela. Ela dizia e muitos criticavam (e talvez ainda hoje o façam) esta declaração que fez (eu ouvi-a dizer isto) muitas vezes, colocando as pessoas no seu lugar: O meu Rodrigo foi o que Deus me deu de melhor! Não foram os filhos, ele vem antes e muito antes! Ganhei os quinze filhos dele (e sim, muitos eram contra porque teve quinze filhos, inclusive os pais dela e os seus sogros) mas ela mostrava que o Rodrigo vinha antes e sempre no seu amor incondicional por ele. O avô Rodrigo prevaricou várias vezes - dizem - com outras mulheres - mas quando estava com ela, continuava-lhe devoto. Ela passava dos seus afazeres para a rua e da rua para casa e diziam: Lá vai a dona Albina, a galinha com os seus pintos! E ela erguia a cabeça e nunca escondia o amor pelo marido. 

Contado por ela, na mesma altura em que andava grávida, alguém lhe disse que o avô Rodrigo andava metido com uma empregada da fábrica de calçado dos bisavós. Tiveram que lho dizer muitas vezes, provavelmente com vontade de ver cada um para seu lado. Ela, contado por ela a mim, também, lá foi tirar satisfações com a senhora que acusavam de ele andar envolvido. Chegou perto dela e olhou-a de cima abaixo. Quem lho disse, queria vê-la destemperada, zangada, enraivecida. A minha avó era uma virginiana dura. E ao invés de fazer o que todos esperavam ou desejavam intimamente, lhe disse: Oh pobre mulher, estás como eu, grávida. Desejou-lhe paz e virou costas, indo chorar para casa. Não se manteve a chorar muito tempo. A vida doméstica dava-lhe sempre o que fazer. Prendada na cozinha e em todos os lavores de bordar, de limpeza e organização, a avó conversou com o avô sobre isso. Nunca soube o que aconteceu a essa senhora grávida e provavelmente, o avô Rodrigo semeou outros Guedes, algures fora do matrimónio da avó, algures fora de Costa Cabral, da Rua do Cunha, da Rua 5 de Outubro, por onde andou. O avô chegou a trabalhar no café Dragão, bem aí ao teu lado. 

O sentimento de posse nada tinha que ver com o amor que lhe tinha e ela entendia assim. Não me surpreende que o avô Rodrigo tenha mantido a estima, o amor e a consideração por esse ser humano elevado que foi a avó Bina. Também foi ela, quando nos zangamos, eu e tu, que me disse: Se for mesmo amor, não o perdeste. E tu voltaste. E quando partiste definitivamente, e nunca se parte definitivamente, nem com a morte, ela me disse: Atrás de uma montanha, há sempre outra maior. Não gastes a vida a chorá-lo. E nunca partiste. Todos os que conheci me ouviram falar de ti com devoção, nunca quis esconder o patamar e a fasquia que teriam que vencer para alcançarem a tua altura, a tua nobreza e o meu coração que te não soube esquecer. Mas eu tentei, tal como eles, atingir esse nível de grandeza em mim. Eu nunca desisti de o tentar. Mas um amor incondicional não se esquece e este facto vem provar-me que a avó Bina sempre soube que assim é! Quando é amor, não morre. 

Os relacionamentos afetivos entre um casal vão se alterar, independentemente do que a igreja vincula, juntamente com o julgamento social. Os casais nunca se divorciaram tanto como hoje. O amor que une pessoas raramente atravessa esse patamar da temporalidade e da condicionalidade. Temos que aprender a aceitar as pessoas tal como são, o amor e o casamento são um trabalho árduo e difícil porque nos obriga, a par com o que sentimos, a entender o outro e não a querer mudá-lo ou salvá-lo dos seus abismos. Só o podemos fazer a partir de nós. E esta compreensão chega para entendermos e expormos com verdade quem somos e como aceitamos o outro. E é um trabalho duplo, eu aceito em mim, eu mudo em mim, eu entro em mim e compreendo-me para aceitar o outro na plenitude. Nem todos viemos viver essa missão de amor incondicional a um outro, individualmente. Nem todos viemos ser mães e pais, nem todos viemos experienciar o mesmo. Como posso amar-te e exigir que me ames da mesma forma, que sejas igual a mim? 

Estiveste casado mais de vinte anos com essa mulher que entrou dentro da nossa relação e permitimos que o fizesse. Num ataque de estupidez compulsiva, de ignorância e fragilidade, entrei em rutura com os meus próprios standards do amor, fiz-te as malas e quis-te fora da minha vida, como se pudesse que o meu coração te fizesse as mesmas malas afetivas - o coração não sabe fazer malas, vive lutos, empurra dores, alimenta ilusões, mas nunca se acomoda. E encontra razões que a própria razão desconhece. E tu ficaste. Tudo o que quis nestes anos foi que estivesses bem, que fosses feliz, que te corresse bem a vida. Que tivesses saúde e amor. Que fosses compreendido e amado. Os ciúmes podem produzir doenças crónicas e temos que aprender a conviver com tudo o que a nossa falta de entendimento produz. Da melhor forma. Não te procurei, não te incomodei. Nunca o fiz. Mantive-me sempre longe da vista, do alcance, de quem não soube fazer o mesmo por mim. E todos os relacionamentos posteriores a ti foram tentativas para substituir o que tivemos, para atingir esse patamar. Como se pode ser feliz depois que se atinge o auge? As migalhas entretêm-nos, mas não nos satisfazem.  Não é com menos que reconhecemos o mais. Aliás, no menos, reconhecemos esse mais que perdemos. 

A minha lua de gémeos ajuda-me a racionalizar, mas não sabe substituir-te. Tento compreender, mas o amor não se compraz a essas reduções e jogos humanos. E só através de um versículo na Bíblia, eu entendo o meu amor por ti, (entendimento tardio e doloroso), em 1 Coríntios 13: 

1 Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine.

E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.

E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.

O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece.

Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal;

Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade;

Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.

O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá;

Porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos;

10 Mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado.

11 Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino.

12 Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido.

13 Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor.


E tudo o que vem de mensagem subliminar a este versículo é que o amor não é humano. O amor é o tesouro que ganhamos através da nossa divindade, ele é divino, não se pode substituir a nenhuma outra forma de sentir que não seja a intemporalidade e a incondicionalidade. E quando estamos diante de um amor assim, reconhecê-lo é um ato de honestidade e de coragem e só depois, muito depois, de ousadia e entrega. Quando vivemos algo desta grandeza, não há perdidos e achados onde vais depositá-lo, não há oficina e nem máquina nenhuma que o possa retificar. Ele já nasceu pronto e destinado. E se este discernimento que tenho agora, o tivesse há vinte e cinco anos atrás, não havia rotundas e nem caminhos ou estradas alternativas, por mais sedutoras ou enganosas que o coração desconheça. A bússola é o coração e nós humanos, passamos uma vida a fugir do que nos diz ele. E tudo isto existe, sem que tenha de ser triste. 



Comentários

Mensagens populares