Dois para lá

 



Vi o filme sobre o Ernesto. Cozinhei o jantar, jantamos quase em silêncio e depois de servir os morangos à minha mãe, fui metendo a loiça na máquina e limpando os balcões e a pensar que já não devia estar neste sítio. Que se esqueceram de me vir buscar. O frio invade-me pela noite e acorda comigo pela manhã. Já pensei se seriam os meus amigos a deixar-me só. Ainda agora mesmo, a foto da Cláudia caiu da beira do espelho, onde se tem mantido desde há meses. A salamandra queima as pelets mas não aquece verdadeiramente. Li dois ou três postes no Wordpress, passei no Farol Abandonado do Tiago, fui ao Sítio da Amarela e à Grace. Só a música me aquece, mas parece-me agora tudo tão temporário. Como o agora. É instável, impermanente. E eu devo habituar-me. Ontem recebi mais uma chamada a denunciar uma traição em continuidade, permanente. Vá lá, ao menos alguma coisa permanece. Tratei do assunto. Já tive as minhas conversas sérias com os vivos, ontem. Hoje já conversei com os meus idos que nunca foram, mas talvez seja hora de irem para outras missões, talvez este frio me venha avisar de que, eventualmente, os amigos precisam de dar continuidade aos projetos noutros lugares. 

Tenho pensado no desapego. Ando a praticá-lo. Não como se pratica bicicleta ou yoga ou meditação. E começo a acreditar que este berbicacho não deve ser praticado apenas e só com coisas e pessoas. Devo estendê-lo aos lugares. Faz-me todo o sentido, enquanto escrevo, como se caísse uma camada de ar fino e se sobrepusesse aos lugares que já não me dizem nada. Como quando escreves uma página inteira numa máquina de escrever e retiras a página às roldanas, onde se escreve o fim. Há lugares assim, que são como pessoas e como coisas, que um dia encontraram lugar em nós, um dia encaixaram nas realidades de então. Desativei o facebook, penso eu de que. Não me diz nada, nem os perfis que desfilam, naqueles largos scroll downs onde acreditam poder meter o mundo. 

A minha mãe continua entretida nas sopas de letras e já são quase dois anos, um bacharelato, e intercala com os vídeos dos arturianos, do apagão e do fim de tudo e quando penso no fim de tudo, lá me vem um sorriso aquecer-me, porque me recordo do Sérgio Godinho. Se me lembro dele, sorrio, se ouço a sua música revitalizo. O maestro César Viana fez um upload ao seu canal, Contrappunto malinconico, li que a Lena d'Água lançou um novo trabalho e o mundo nunca seria esta diversidade tremenda sem arte, sobretudo a música. 

E agora vou ler duas páginas até bocejar e dormir que amanhã tenho pendências a tratar e diligências na minha nova função de investigadora criminal. 

Deixo-te uma música triste de uma pessoa alegre. Música com palavras e cor misturando-se ao que de nós ainda vive. E o que vive mesmo? O xanax, a aspirina e a água, o cigarro que arde e a espera da conciliação ao sono. 



Comentários

Mensagens populares