Pra não dizeres que não falei das árvores

 




Eu queria dizer-te tantas coisas. Hoje, eu queria despir as camadas desta derme que não me permite mais voar, como antes. Recorro à página em branco. Ela acolhe os meus sentimentos e carências, como se fossem as tuas mãos em concha, a guardarem água para a minha boca tão sequiosa de ti. Não mais te sonho nas noites frias e lamacentas. Nem nos gloriosos entardeceres que vejo daqui, dos mochos, olhando no infinito, Castelo. Sinto-me como uma condenada, prisioneira das suas escolhas erradas, refém, dizem, e claramente, têm razão, do que falo e livre do que calo. Mas deixa-me dizer-te que já passaram mais de quinze dias da última vez que estive contigo, nesse mundo onírico e ainda trago nos olhos, nas mãos e na boca, sim, na boca, o sabor da água que me ofertaste. Na taça de barro, poisada entre a velha cristaleira de cozinha e o mais velho ainda fogão de lenha. Essa púcara onde as tuas mãos recolheram a água que eu bebi levaram-me novamente ao princípio dos tempos. Na parede que separava o corredor para o quarto de banho, as tábuas deixam entrar a luz e espreitam-se as névoas do passado, como se nunca houvera escaleiras entre passado e nem futuro de tempo algum. Nelas, entre as tábuas, o teu sorriso emoldurado pelos caracóis desalinhados, a tua calça de ganga e o discurso de um futuro por acontecer, encontrei o novelo. Esse costurar noite adentro, o céu coberto de estrelas onde todas as constelações eram nossas. Quando o bom pai não me permite estar contigo durante o sono, eu fico encurralada, as minhas asas murcham, como dois espetos que se engonçam entre os ramos velhos das árvores que bradam no cume, que aquecem no lume o café. Oiço-as crepitar e até oiço o arrastar dos chinelos de casa da Almerinda, enquanto chama o nosso filho para o lanche:

- Cristino, anda cá comer qualquer coisa! O rapaz é teimoso e seco, jimbras como o pai, mas não engana ninguém, é um cristino, vê-se lhe bem na cara!

Afasto as mechas do meu cabelo para escutar por entre as tábuas esse crepitar da caruma que me delicia os sentidos, quando o aroma do café me invade. E oiço música, vê tu, música que compões entre os teus lábios de amora, doces, e os breaks do Rui, generosos e estridentes boca a fora até lhe chegar aos pulsos, como se, também ele tivesse asas e as usasse como baquetas, na sinfonia de escrever a vida. 

Sabes, todas as noites são escuras e feias, quando te não encontro. Fecho os olhos e tento ver a névoa, ouvindo as trindades que vêm de lá debaixo do adro, e os meus ouvidos são ferramentas que afino para te ouvir e, assim, me sossegar o bater das horas no peito. E tu, que o pai me pôs na frente, achando-me digna de te amar, não és tido nem achado nas pronúncias, apenas do meu discurso direto se podem retirar sentenças. Valorizo o esforço do bom deus e já não me obrigo a calar o que te vou dizendo, desenhando com a ponta dos meus dedos, nos teus cabelos, no teu nariz adunco, no teu sorriso que me sustenta a esperança, carícias. Sabes disto tudo, e eu sei que o sentes na alma. Quis mostrar-to toda a vida a que tive direito, mas este receio de dizer amo e perder de seguida encontrou-se me entalado, desde que o meu pai morreu e sim, deixava que o medo ganhasse e foi assim que me fugiste entre as frestas dessas tábuas antigas de pregos de cabeça arredondada, onde podia ouvir a música do vento entre os pinheiros e a voz dos homens de muitos séculos atrás. Sereno a redenção, a minha, claro está, para um armistício que te levo, também nas mãos, cheias de peles e magras, onde a artrose vai vencendo espaço, água fresca da púcara de barro da Almerinda e adoço com duas colheres de açúcar amarelo e meia de mel que é receita de mãe, depois estico de novo o cortinado que oculta a marmelada e o queijo de cabra, trilho duas passadas breves e sento-me no banquinho costumeiro, onde trocamos, eu e ela, as palavras de amor entre uma mãe e uma companheira que se inspiram em ti para tecer a paz. O café esfria na malga, que eu sorvo entre bagadas de lágrimas e sinto as suas mãos escorrerem-me os cabelos, e até sinto o cheiro a morno do seu xaile pelas costas, pedindo-me que não chova dessa forma, que depois das tempestades de te desesperar, virá a bonança. E eu que acredito nela, oiço a música conduzir os diques da água das minhas iris, para fazer florescer jardins no céu. O amor é um milagre. Todas as mulheres que te arrancaram de mim, entraram na tua vida com um único propósito: - Mostrar-te o que não é amor. Desmontar as crenças ancestrais dos teus pais que ainda regas, distraído. Para que reconheças em ti os teus dons esquecidos, ofertados para o propósito que se adivinha, que se avizinha, cada segundo mais próximo. O amor é o milagre mais chegado ao céu, entre a tua e a minha pele. E enquanto o bule ferve a água de ânfora e alecrim, eu teço-te um cachecol de intimidades, como se fosse um marcador para que não esqueças o caminho de regresso. Bordo-te o amor que te tenho na cambraia desta tarde agridoce. E agora sim, sorvo o chá quente, como se o bebesse dos teus dedos, enquanto oiço o Calvário a cantar a chorona na tua boca. 

Comentários

Mensagens populares