Zeca Afonso & Alma Novaes
Abrilada em conjunção contigo
O ar enche-se de resquícios de glicínias
fustigados pelo vento em corrupios,
e deixo, entreabertos, com um seixo
calcado no chão, os portões
para a chegada das brisas primaveris
e dos risos infantis
que tardam em se anunciar,
que extinguem as flores já pó
Que a estação se faz das sementes
já extintas do nosso passado ancestral
e o trânsito das almas abre espaço
a qualquer coisa maior do que o físico,
imaterial e revolucionário,
que constará no inverno do ano transato,
do éter e mercúrio, dos abalos sísmicos
seremos pixéis no espaço etéreo,
de acordo com essa futurologia,
um qualquer estafermo híbrido
colherá as rosas de Sta Teresinha
que lá atrás semeei para te brindar!
Não mais chegarão os doces aromas
dos bolbos e dos botões às tuas narinas,
aos teus sentidos que se perpetuam
na tua distância, que é estricnina
líquida para eu sorver,
bomba de nagasaki, hiroshima,
meu amor,
na minha constância de menina,
na resolução da mulher,
de te esperar, emoldurando a espera
com um salgueiro por companhia.
A memória dos dias bonitos
aguarda em pausa, tal como na profecia,
como a sentinela aguarda a noite,
na segurança da sua guarida,
de novos ataques
dos velhos inimigos de estimação,
a tua chegada, na tua partida
e a margem da memória prossegue
ainda em ferida, se ergue,
como boia de salvação no rio hostil
de aparência inofensivo,
preserva-se de lismos,
como o camaleão,
para se proteger do esquecimento,
da bênção da história
que a terra, que oculta os seus registos
e repete ciclos, sabe-os de cor,
intui o perigo e pensa a renovação!
E as almas pressentem o abismo e
de atalaia ao egoísmo se recupera
a fonte da fecundidade do futuro!
É já tão tarde para pôr trancas na porta,
travões e freios à nova era de aquário,
e é sempre prévia a idade de partir,
e as eternidades que não esperam
e os homens que não acordam
e o meu espanto de viva se mantém,
desperto e febril,
carregando sempre o peso da saudade,
a solenidade de uma cerimónia vil,
e ao som de uma trombeta
a humanidade desperta na colheita morta,
tomba na ponta da baioneta
e o amor que te tenho me fala e me grita
que só haverá música de intervenção,
que só será primavera, outra vez,
quando tu regressares à origem,
quando os rios das minhas veias cantarem,
quando em mim morrerem as mágoas,
quando se inventarem novas palavras
para dizer amor, sempre te esperei,
e só se gritará liberdade
quando inverteres o percurso, o discurso,
todo tu em afluentes, a calibrar correntes,
a produzir pontes, a colorir poentes,
e só então, tu em mim,
generosas águas mil,
por todas as ruas do meu corpo
haverá fogueiras e fogo de artifício,
de cravos e rosas, de Vénus e Marte,
só depois de ti chegará, renovado, Abril
Comentários