A ironia fina de Deus

 



Pai que estás no céu, que mesmo estando no céu, nunca me abandonaste, que mesmo quando desapontado comigo, nunca desististe, que mesmo eu não sendo perfeita, me deste sempre força e alegria para sorrir, que mesmo sabendo das lições duras que eu tinha para aprender, me deste música e paliativos para suportar as provas duras do conhecimento que, mais do que académico, veio experiência em carne viva, que me deixou cicatrizes profundas, feridas que não cicatrizam sem lição aprendida, imundas, da imundície que o homem escolheu, porque pelos meus defeitos, o maior da teimosia, de acreditar que conhecia as pessoas e a sua natureza, que me garantia, que mudariam pela minha constância e firmeza, paizinho, deixa-me agradecer-te a gentileza, depois da queda, a realeza de estar desperta, estou sempre a agradecer-te e nunca me parece ser suficiente, que a tua abundância de amor supera a abundância de lições, que não me deste mais do que poderia suportar, que te falo, que te escrevo, que me calo para entender onde me queres levar e porque queres que vá assim, desta maneira, para que me inteire com  profundidade, para que mergulhe na tua fertilidade e eu pai, pelo amor que me inspiras, pela imensa bondade que semeaste em mim, faço a tua vontade, desejando que ela se cumpra, a tua, pai, não a minha, que a tua é a medida certa, a escolha que me cabe, o acordado.
A pureza que me ofereceste de berço, pai, desmontei-a, através da lascívia dos meus inimigos, mas continua pureza, a minha ingenuidade afoguei-a em lágrimas, pela traição nas minhas costas, mas sabes bem quem sou e continua como iniciou, aos que são de verdade. Vertical. 
Desmonto tudo e volto a montar, só assim compreendo as curvas, não as da estrada de santos, que essas não acompanham a razão com que conduzes na minha vida, e se antes teimava contigo, que não era como querias, mas como eu achava que sabia, reconheço esse defeito como leviandade, tu que sabes todas as razões que a própria razão desconhece, tu, só tu operando nesta dimensão através das ferramentas que nos ofertaste, só tu no propósito divino. Calo-me e não saio de fininho, que não me fizeste cobarde, fico a ouvir-te, a tentar entender-te e nunca desisto.
Abençoada sou, porque me fizeste assim, desta maneira, teimosa e persistente, arrogante e resistente, idiota e tão útil quanto baste, para os que se serviram de mim, como se eu pudesse mudar pessoas, senão a mim mesma. E porque tu estás na dianteira e, sim, pai, porque nem por um segundo te ausentas de mim, como não reconhecer que são tudo milagres operados de ti que sinto uma imensa vontade de te agradecer?
Amo-te pai, e não é obrigação o texto, a vontade, o desleixo e nem a leviandade, a teimosia e a verdade. Faz tudo parte das tuas ofertas, de pai para filha, sou merecedora disso, e necessitada também, ou não seria assim, imperfeitamente completa, inacabadamente desperta. 
Sei que queres que eu escreva, sei que queres que me leiam, que queres que eu oiça os gracejos dos meus inimigos, que queres que sinta a força das suas mentiras e me defenda, para isso me desenhaste tu, por isso, toda uma vida dedicada à cordialidade e doação, por isso a cegueira constante em relação aos amigos do alheio e reconheço a tua inteligência e a tua maestria. Sou-te mais do que grata, paizinho, sou-te devota, tanto vivido e tanto erro, tanta presunção e tanta tolice, tanta asneira e tanta vista grossa. Eles gracejam e tu desenhas-me um sorriso que intercepta a lágrima, eles amaldiçoam o meu nome e tu me pegas no colo e me mostras que amarão em mim o teu esboço, o que trago de ti, sem qualquer esforço, mesmo não gostando de mim. E sorris, porque tens bom feitio, porque te sobeja o humor, porque és um artista de variedades nos intervalos em que conduzes o universo, distraindo os incautos, os que não aprendem, para os apanhares na curva. E eu, na minha insignificância, sento-me ao teu lado, como se jogasse o mesmo jogo do criador, e sou a personagem voluntária, marioneta, ofereço-me e enquanto tu conduzes, pai, eu observo-te, enquanto me conduzes pai, eu absorvo-te. E comoves-me. Comovo-me com o teu amor extravagante, fértil, com a tua atenção e ternura. E faço dele a minha meta, far-me ei esteta, brinco com as palavras, fizeste-me esteta, e ambas são verdadeiras, e hei-de ir a Meca, lavar os meus pés, como se fossem os teus, depois de uma longa jornada. E amar os outros como a mim mesma, com a distância e a entrega, cada macaco no seu galho. Como a mim mesma, pai, com a devida distância que me ensinaste. Curvo-me a ti e tu estás em todos, em tudo, no mar e no céu, nas gaivotas e nas açucenas, no cutelo e na jorna, no dia e na noite, ao sol e à lua, que o respeito a tudo revela a tua melhor natureza. A minha melhor natureza. E eu experiencio-me melhor, paizinho quando amo em mim o que me deste, esta que sou, que me fizeste para me doar, para me doar com restrições e limites, que isso aprendi a duras penas, como dizia o João, mais vale emendar um erro à mão do que o manter
Paizinho, falo muito contigo, em monólogos diários, escrevo-te textos extensos, dedico-te os meus dias, e peço-te mais claridade e tu dás-me força, e quando te peço força, tu dás-me claridade. E quando só te agradeço, pai, juro que é quando mais me dás, mais me amas, mais te sinto, mais eu cresço. Transbordo no teu amor, sinto-me acompanhada e tenho a quase certeza de que não sou a única que te ama assim, tantos outros de ti iguais a mim, que se enlevam, que absorvem, que aprendem e que agradecem e nunca estamos satisfeitos de ti, a ponto de dizer pai, já chega. Pai, eis-me onde me queres, sentada na tua mesa, deitada na tua cama, conversando num tete a-tete, como se fôssemos dois corpos no mesmo plano. E o engano começa aí, somos dois em um, somos todos em um. Pai, não pretendo mudar ninguém. Mudaste-me. Mudei-me. Que assim continue a ser. Meu querido, estimado e mui amado pai, meu herói, deixo-te hoje uma música do Adoniran Barboza. Sei que aprecias tanto como eu. 
Das muitas ironias, a tua ex-ateia, ex-agnóstica, com ex-pudor de te falar, de falar de ti, de falar de amor. A tua amada filha, 

Cristina Guedes

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