Nascer é um ato de coragem

 






Nascer é um ato de coragem. 

Porque pressupõe a sobrevivência. Nem sempre assim é. A sobrevivência nunca é um dado adquirido. A coragem sim. 

Estava tudo acertado. Não demoraria para que se desenrolasse a viagem, a grande, a que me iria colocar de novo na dimensão desejada. Foram séculos dedicados ao estudo do projeto que iria iniciar no tempo, que já era mais que um projeto rasurado. Voltaria a ver aquela terra, as cores, as formas, a linguagem, esse veículo libertário que era uma veste preciosa na comunicação com todas as outras formas. O amor desenhara um ventre, uma luz no fundo do túnel me expulsaria, para que, de novo, a chegada iniciasse e todos os trâmites haviam sido alinhados nesse sentido. Não há ansiedade, nem nenhum tipo de ambivalência. Há o factual. De novo, me irei pintar de mostarda, de arco-íris, ver as montanhas honrar o céu na cordilheira mais alta, todos os meus irmãos saberão que eu existo, que respiro, que lhes posso ser alento, todos procurando um lugar para beijar ao sol e às estrelas nas noites compridas do equinócio. A melodia do sagrado me guiará. Brevemente, sentirei a alegria côncava da existência. Breve.

Eis que uma dor aperta e outra e mais outra. Sinto-me enjoado. Tateio a escuridão e nada de luz e o túnel golpeia-me, confrange-me até que as têmporas do meu cérebro, os parietais e todo o sangue se torne amarelo, da cor do oiro. Mais uma dor, um atropelo e vejo-me empurrado contra as paredes do espaço exíguo, eu sou a dor e a dor sou eu, que ambos somos pertença do mesmo e a melodia fugiu-me, não a oiço, do exterior nem um som, a não ser o meu próprio mergulho na noite escura deste ventre. O mar picado, a sua ondulação espeta-me contra todo o tipo de obstáculo. Parece-me ouvir um grito maior do que a minha existência. E eis que, de novo, como de todas as outras vezes, a encaprichada e derradeira onda me empurra para a luz, vejo-a de novo, sinto-a na coroa, mais um rasgão para que a minha forma toque outras formas, e de novo, sou novo, o bater das ondas é agora o meu próprio coração, e o grito da forma externa é o meu próprio grito de libertação. A dor chegou ao apogeu. A melodia é reivindicada e surge inesperadamente e eis que de golpe, formas novas me devolvem, bem para além da luz, o toque, a cor, o oxigénio e o som estranho e diferente. A comunicação expande. Oiço-me gritar, perante as mãos e contra o ventre de qual saí. Há em mim o assombro da nova terra. 

Tenho sobre mim um tecido que me aquece as extremidades, mas é um rosto, uma suavidade que tem forma e sorri, abrindo uma espécie de buraco ao ver-me, ao olhar-me, aquilo que vejo e sinto é um sorriso, uma bussola de prumo, aquela é a singularidade de forma que me trouxe ao mundo, e eis-me novo, diante do seu rosto, da sua pele que é uma forma suave de se dizer tudo, mãe, veículo de sacrifício, linguagem de porto seguro, os seus olhos são arco-íris ainda nebulosos mas sei que é a origem deste meu regresso, as suas formas me enrolam como tenazes, devolvem-me uma identidade, recupero a voz, depois de me habituar à luz excessiva, ao mundo de cores e a linguagem rompe e quero dizer mais do que uma sílaba, um choro rasgado e entre os meus lábios surge o alimento, uma auréola de montanha, escura e molhada, o líquido jorra para dentro de mim e eu volto a saber o que significa esta vida que me foi devolvida, e sugo o alimento que é mel e que é trigo, que foi tempestade e agora abrigo. Dói-me tudo, que a existência dói, bem ali, no início, tudo é como dizer que nada em mim está destituído do destino que trago, o da dor e da experimentação da vida. E enquanto o alimento me entra no sangue, uma dor exangue me vai ao umbigo, uma tesoura que corta o elo definitivo da libertação. Agarro-me ainda mais ao bico do seio da minha mãe, essa deusa que adormece de cansaço pela exaustão de parir um ser novo, eu, eis-me chegado e seguro, eis-me contido e expectante, eis-me de novo vivo. E demorará para que o papiro se cumpra na íntegra, mas agora, aproveito o sono, abandono-me ao cansaço de um corpo que me foi emprestado para vir de novo habitar entre deuses e martírios e fascina-me sentir que os meus órgãos lentamente, vão experimentando se desprender do outrora, de onde vim mesmo agora, as minhas mãos experimentam o meu rosto, sentindo a dor da separação ensaiada. Somos um separados. Ela, a que me criou adormecida e esquecida do seu próprio corpo e identidade e eu a identidade recém-chegada que veio somar-se até que possa, eu próprio, por mim, erguer-me, manifestar-me, dizendo ao que vim. Adormeço e vejo do outro lado, todos os que me precederam sorrindo, acenando, motivados pela jornada bem-sucedida. 

Já sei o que significa ontem e hoje. Já sei como dizer mãe, e o apelido do homem que auxiliou a minha mãe na conceção. Quero dizer pai, mas os meus lábios só regurgitam pá, pá e volto a tentar, experimentando a linguagem nos lábios tenros. Pá e mãe. Ei-los diante de mim, acomodado no colo dela, com o olhar dele nos meus olhos, diria que tentando adivinhar o que penso ou sinto ou vejo. E da boca dele, volta a sair a insistência, a incidência na sílaba em falta. O i para completar pai, como digo mãe, mãe que é o princípio, o apogeu, a âncora que permite o aconchego e o rosto endurecido desse homem que é o pai, o meu pai retorna, irritado ao meu olhar, como exigindo que consiga verbalizar o i em falta, o que virá a ser o i da questão paterna. 

Acordo, balbucio sílabas que imitam o que oiço, e no ar, a energia elétrica de mil raios. Não compreendo a excitação e nem a movimentação desarticulada. OS adultos que me conceberam desenrolam fogo nas palavras, que é a minha disciplina favorita do momento, a linguagem. Quero dizer o que sinto, através da minha boca, mas as sílabas soam desconexas e baixas, porque ninguém volteia a face para mim. O meu chão é almofadado e uma rede me separa do chão deles, onde se agarram e se espremem, onde a dor tem de ser feia e mesquinha. Grito-lhes e choro, ansiando que me oiçam, mas só eu me oiço, que as suas vozes, as suas palavras, o seu discurso se sobrepõe ao meu. Alguém volta, finalmente, ao meu lugar e agarra-me e tento tatear o seu rosto, como dizendo estou aqui, sou de vós o que posso empreender a paz que a guerra não constrói nada de bom entre vós, sou de vós e vim trazer-vos amor que é o que tenho, e sinto no rosto da minha mãe, as lágrimas e o sangue misturarem-se e vejo a imensidão vermelha, como se do rio de lava doce, se sobrepusesse, a tingida cor da guerra. Encosto o meu rosto ao seu, mas sinto-nos ambos sacolejados e projetados num espaço de escuridão, onde o corpo dela cai no vazio e o meu desamparado, também é projetado no chão frio de outro túnel que não me lembro de ter visto nos papiros, nas rasuras do divino. A violência da linguagem e dos atos compromete a vida, a fragilidade humana esconde-se e sobe à garganta humana, perpetrada, muitas vezes, num ato impensado, num atentado contra a condição do outro e já não depende de nós, das circunstâncias que se geraram, mas do outro a quem atribuímos o poder de fazer parte da nossa existência. E num segundo breve, tudo se compromete, tudo se desfaz, o nó, a vitalidade, o acesso ao corpo e à identidade. Um fio se rompe para a eternidade.

Ainda estamos deitados, tento alcançar a sua mão, o seu braço, balbuciar estou aqui, vem pra mim, mas há no corpo da minha mãe um abandono frio, vermelho e frio e uma poça de sangue a arrefeceu. Cerro os olhos, a fim de perceber o que vem a seguir. A seguir àquela imagem de abandono, abandono-me eu também. 


Quando volto a abrir os olhos, estou eu e Deus. Eis-nos de novo, lado a lado. Há em mim alívio e comiseração. Breve jornada a minha. E ao meu lado, o sorriso da minha mãe, abraçada a mim, sem corpo, nem sangue, nem tristeza e nem revolta. Ambos regressados a casa. E sinto que a minha missão, por mais breve que tenha sido, teve o seu auge na libertação daquele ser vincular que sorri ao meu lado, enquanto o próprio Deus amor e misericórdia nos afaga com o seu olhar de compreensão, curando as feridas e calando as questões que, porventura, ela teria vontade de fazer. Ao meu lado, a mãe continua a sorrir. Num sorriso sem cabeça, numa auréola de libertação e paz. Os desígnios foram cumpridos. E depois daquela pausa para o entendimento, transporto-a comigo, para que disfrute de outra viagem que começou agora mesmo, noutro plano que transcende a matéria e a compreensão humana, onde figuras como a do meu pai só experimentam tarde tal realização. O mistério adensa-se na terra e condensa-se nos céus. Está assim consumada a minha jornada e a dela, por ora. 

 


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