O Treponema Pálido da nossa separação

 



Sempre fui travessa, arisca e bem-disposta. Tudo tem significado para mim, as horas, os dias, as datas, as árvores, os gatos, o entardecer, o chá e as conversas e tu, Manuel. Tu significas o riso e o sonho, o ontem e o amanhã. E ainda o hoje.

A conversa mais importante que alguma vez tinha tido na vida foi ali. Ainda os dias eram longos e repletos de esperança no futuro. E essa conversa foi-me muito sucinta e reveladora. Podia resumi-la a uma frase: E quando acreditares que tudo se acaba, tudo recomeça, sob um novo prisma. Nem que seja o prisma das consequências tomadas por outros. Ou pelas nossas próprias escolhas. Na altura, eu teria os meus vinte e nove anos. E sabia que assim era, porque tinha visto a marcha dos dias iguais e diferentes trazerem tudo novo, de novo, mais um dia e um ano e muitos anos. E nessa altura, tu ainda voltavas para mim, como as ondas retornam ao grande oceano. Ainda eras o meu salvador.

O meu tio, nessa altura da perda da mãe, não queria diminuir as minhas possibilidades e nem as dourar. A vida era o que era. E tinha sido e continuava, nem ventos e nem tempestades alteravam o seu curso. A velha cadeira tinha sido presença constante dos humores de todos na casa, e também tu lhe prestaste culto. Que adoravas olhar o horizonte nos dias claros, que tomavas o teu whiskey, pelo entardecer, no velho casaco de angorá que ainda arrasto comigo para todo o lado, e bebias em tragos curtos e demoravas os olhos nas linhas do horizonte. Como um velho do Restelo, já com alguns presságios que nunca ousaste contar-me. Recostei-me na velha cadeira que servira de abrigo a tantos de nós, em momentos difíceis e menos. Entregava-me à absorção da paisagem e até aos faz-de-conta que ainda podia na altura. 

Um dia, num dia perfeitamente normal, perfeitamente igual a todos os outros, ressalve-se a oportunidade do dia se desenhar claro e auspicioso para o mundo dos outros, num dia como este, verei a marcha encurtar-se, os meus braços não tentarão matar o peso das minhas agonias, divergindo para outros cursos, nem me levarão para novas lutas. Um dia, acordarei com o cabelo desgrenhado, colocarei o teu casaco velho pelas costas e, assim mesmo, em camisa de noite, como agora, virei sentar-me nesta cadeira, ruminando os passos e a paisagem, só, como estou agora, sem a caneca de chá, sem me preocupar com o destino das flores, e nesse dia, não sentirei nada, nem ansiedade, nem medo, nem um sonho a colorir-me a tez, aceitarei, finalmente, a derrota, implorarei, talvez, que nada de novo venha, nem mais um gato, nem uma simples flor, que me não quero responsável por mais nada e me entregarei aos desígnios do criador, que me trará a luz que preciso para repousar. Gostava de morrer aqui. Neste mesmo sítio, onde me encontro, de onde posso ver os barcos surgirem na linha do horizonte. Nesse dia, igual a todos, que se fará novo para o mundo, quero deixar-me ir pelas mãos de quem me enviou, e talvez, é só um talvez, que em matéria de vida, não podemos reclamar demandas, talvez faça vento, talvez o mar se não aquiete para a minha partida. Talvez peça para o céu se carregar de nuvens densas, talvez peça para que tudo estremeça para que eu possa partir. Que os trovões sempre trazem um doce alívio, que não queremos separar do acalmar das águas.

Os dias nunca são iguais. Ainda cumpro a sentença que me trouxe cá. Acredito que sempre que encarnamos, vimos cumprir uma penitência ou validar uma injustiça. E se eu não estiver enganada, vim cumprir ambas. Mas só Deus sabe, por mais que o nosso coração nos deixe antever. E a compreensão, dizem, virá no momento final. Depois de tantos anos, só nos últimos me lembro de ter perdido o riso. Perdi a capacidade de sorrir. Perdi tanta gente, velhos e novos e não nascidos, perdi o riso, Manuel. E essa incapacidade nasceu do veredito que haverias de trazer à nossa vida como escolha. Nada há neste mundo que me faça sorrir de novo. Mesmo às flores ou aos gatos, ou às tempestades. Sim, o riso fácil foi um aliado que perdi nesse continuar do tempo que me veio confirmar que, mais que meu amigo, foi um professor. Nem a morte, nem a doença e nem as cartas malditas se compadeceram da vida que eu tinha planeado, dos sonhos que diminuíam os problemas, fossem quais fossem eles. 

Quando ainda havia vida e riso em mim, quando ainda usava o faz de conta, quando ainda vivia entre vivos, e me preocupava com colorir a vida dos outros e a minha, recordava-me dos jogos de palavras no tabuleiro, de estabelecer metas para cumprir tarefas, de acreditar em qualquer amanhã que os outros me trouxessem, do forno quente com o cheiro dos biscoitos de canela, acabados de fazer, nos trazer momentos bonitos aos dois, muitos sorrisos de cumplicidade, refeições lentas e simples, mas bem vês, depois de partires, não há qualquer amanhã em mim, o chá já é tragado como veneno, os gatos adotaram-me para que eu não me desgraçasse contra os móveis, ou me despenhasse no rochedo aqui defronte. Quando ainda estavas por aqui, e eu te servia o café amargo que tanto apreciavas e te via cortar a lenha, como se fosse a mais fácil das tarefas, quando te podia observar os movimentos e os silêncios, todos os amanhãs eram possíveis. Vinte e duas cartas, é tudo o que possuo de ti, vinte e duas cartas lidas e relidas na exaustão que o tempo me tem doado. A última chegou há dois anos. Não há, talvez, nenhum dia em que a tua caligrafia, ou alguns trechos das tuas palavras me não assombre. E nem sequer sei se há vida em ti ainda, ou se já me vês doutro patamar, porque bem vês, para mim morreste e é esse o luto que faço. Nunca me vieram bater à porta com telegramas, ou trazendo mais uma carta, nunca ouvi dizer que já tinhas partido. Escolheste e eu fiquei só com o resultado da tua escolha. Não poderia impor a minha presença. Não me iria importar do cheiro da doença, dos pensos. Não querias que te visse assim, doente, escolheste a solidão por companhia e eu fiquei com ambas, a tua e a minha solidão. E todos os dezasseis de dezembro me empurro para o dezoito, que engulo as pastilhas necessárias que me façam dormir o dia e a noite e acordo sempre transpirada, no dia dezoito que é o dia de te chorar. E hoje que ainda estamos em novembro, que ainda se veem e ouvem jovens e menos jovens, quando não chove, procurando moluscos e namorando, no areal aqui em baixo, eu já pressinto dezembro chegar. Numa clara antecipação de febre, de medo. Tenho tanto medo que, ao partir te não encontre. E que, afinal, a vida seja o despropósito, depois das metas cumpridas. Amanhã que é como se dissesse hoje, vou escrever-te uma carta. Talvez seja entregue em mãos ou talvez já te não encontre, uma carta onde te direi o que não me permiti antes dizer-te, o que a tua decisão calou em mim, e mesmo que seja o silêncio a abrir a carta, que não seja lida de todo, quer estejas ainda presente, ou, como prevejo, ausente deste plano, saberás que eu vim ao mundo por tua causa. Que a tua força foi a minha força, que a forma como alinhavas as tuas falas eram o alinhamento perfeito dos meus pensamentos, que dia nenhum da tua presença, mesmo quando te vi mais triste ou culpado, foi mais grosseiro e mais vil do que os segundos compridos da tua ausência. Que te não passe pela cabeça, se ainda estiveres vivo, que existiu acusação no meu silêncio. O meu silêncio foi a minha incapacidade de te dizer que, mesmo me tendo sido infiel, eu continuava a amar-te, e que mais que isso, compreendia que a distância entre nós te não era fácil. A vida não se compraz das nossas aflições, fraquezas ou ambições. E não te disse que aceitava tudo, a tua escolha, por me faltarem as palavras ou, porque provavelmente, dentro de mim, sabia não poder construir o dia seguinte onde tu não estivesses. E vê, tu que estiveste anos intercalados sem mim e eu sem ti, e sobrevivemos. Porque em momento nenhum, podia prever o teu exilio, em momento nenhum adivinhava a tua doença e, menos ainda, a tua escolha de não me quereres a acompanhar o desfecho final da tua vida. O difícil foi dizer com palavras que te entendia, não era o que eu tinha sonhado para nós, a infidelidade, mas compreendia-a. E isso não to disse. Se quando calamos, consentimos, perdoa-me, mas o meu silêncio não tinha consentimento. Tinha apenas a minha covardia ao não te dizer que cuidaria de ti, na saúde e na doença, para o bem e para o mal, até que a morte nos separasse. E as palavras são só palavras. E tu disseste-as. Treponema Pallidum. Sem tratamento. Soou-me a estrangeirismo, mas bem vi, pelo teu facis, pelo perfil determinado e pela tensão dos teus maxilares, que esse vocábulo seria a razão da falta do teu abraço, dos teus beijos ternos e, por fim, da tua decisão de reclusão da nossa vida. O meu silêncio foi de impotência e de não saber o que esperavas de mim, ou se esperavas algo de mim. Esperavas? Porque a atitude foi de aceitação e tanto silêncio nascido desde a última vez que te vi. A saudade sobreviveu a tudo, mas seria desonesto da minha parte não dizer da raiva que sinto pela tua proteção ou menosprezo de mim. E todas essas cartas em nada serviram para me apaziguar. Nunca te respondi, a não ser agora e queres saber porquê? Acreditava que se te não respondesse, viesses procurar-me e depois, sim, depois dentro de mim nasceriam as palavras certas e as atitudes concordantes, que se tivesses vindo, te convenceria e te mostraria que não havia qualquer sentido nessa punição tua, a ti e a mim, da separação. Que a tua doença não me mataria mais do que a ausência permanente. E se tivesses vindo, o dezassete de dezembro seria um dia comum, mais um igual a tantos outros, sempre novo e sempre diferente.

Nunca te perguntei como se chamava ela ou elas. Nunca saberei e francamente, nunca quis saber. Dentro de mim não houve raiva e nem ciúmes, nem revolta e muito menos complacência. Tal como o tio dizia, a aceitação da compreensão vem-nos mostrar a vida por prismas diferentes. O que me revoltava ainda era a tua ausência. Todos partiram, mas as suas partidas, por mais angustiantes, foram limpas. Não tentaram fugir, nem fingir que não era dor, que não lhes importava partirem. A dada altura, sabemos bem o que vem a seguir e preparamo-nos. Contigo, não foi assim. Foi um dia dezassete de Dezembro, lembro-me que te punias ainda, por ter perdido mais um bebé, na tua ausência. Que não estavas lá para me abraçar. A tua tristeza era consequência da minha. Lembro-me do teu abraço no instante em que te vi e te quis saltar para o colo. De te salvaguardares, nesse abraço esquadrinhado, medido, contido, que não era o mesmo que me devolvias nas tuas chegadas. Ou nas tuas partidas. Mudaste. Na altura, não pude calcular a imensidão do dia diferente que tinha vindo para mim, que aquele dezassete de dezembro me impactasse mais que qualquer outra data. E já trazias na mente, estrategicamente como o farias, o que dirias, de que forma colocarias algumas peças de roupa, alguns livros e fotografias na mala e de que forma te sumirias na curva da falésia. Se eu adivinhasse, Manuel, teria facilitado a tua partida com a minha ausência. Ou não teria deixado que enchesses a mala e o quarto de dor, nem os meus dias todos com uma nova dor, todos os dias crescente, uma maré cheia que nunca voltou a ver a preia mar.

Recosto-me na velha cadeira. A chuva é morna e fraca. Nada como eu tinha previsto, mas é hoje o dia do meu cansaço total. Da minha desistência do telegrama que nunca chegará, para me dizerem de ti, que te finaste ou que, por milagre, convalesceste e deste um novo rumo à tua vida. Tomei o chá com as pastilhas que me farão dormir mais calma neste cadeirão. Deixei instruções para que as minhas cinzas se espalhassem neste mar, onde a vida foi fecunda em dias bonitos e outros menos. Os gatos continuam a passear-se nos umbrais das janelas e as flores vergadas pela chuva. Desconfio que a minha carta nunca te chegará às mãos. E as minhas despedidas ficam na praia da minha vida, aqui, neste sítio onde te sentas pelo entardecer. E eu subo-te ao colo, vestida no teu velho casaco e rendo-me ao sono libertador e molhado. O isolamento humano que me fez companhia nos últimos anos já não me tranquiliza. E ser feliz foi sempre um vocábulo gordo e bonito quando ainda te tinha dentro. Manuel, vem buscar-me hoje, não te demores, peço-te, chama a mãe, o pai, a Adosinda e o Tiago, se não for da tua vontade me receberes ou se ainda nem partiste, mas peço-te que me leves. Desta vez, não quero passar pelo dezassete de Dezembro. Diz que me vens buscar a dormir naquele cadeirão e atravessarás comigo o antes e o depois. 

 

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