Don't play that song

 



A primeira vez estranhei. E a conversa era uma desculpa para dizeres que gostavas de estar por perto, que me querias conhecer melhor, e porque era tão arredia, porque me mantinha distante e fria, porque era tão avessa a uma simples conversa, depois, bem depois voltaste, sentaste-te, depois de perguntares se podias sentar, eu estava a ler Freud, mas nunca o Freud me pareceu tão chato, tão inadequado, Nietzsche, Mircea Eliade, forcei-me a prosseguir, tentando ignorar o que a tua presença me fazia, que me distraía dos meus intentos, pedi outro café, fugi do teu olhar e ele manteve-se, sentia-o através da lateralidade, do disfarce que me obrigava, para que não desses conta que me incomodava suster o teu olhar, sem que o meu coração sorrisse e, aos poucos, fui deixando que ele sentisse, sem o punir, sem lhe dar coordenadas e nem direções, e quando te olhava, procurava que estivesses a olhar em volta, a falar em volta com outro alguém para te observar, e decorei a forma com que os teus cabelos tocavam no lóbulo da tua orelha, decorei a marca que tinhas no lábio superior, decorei a forma do teu sorriso franco, os cílios e os olhos, a sua cor e formato, decorei tudo, esmiucei, investiguei, debrucei a minha atenção, voltei o foco para os teus braços, o teu pescoço, a forma como seguravas na chávena do café, as tuas piadas, e já era capaz de, no escuro do meu quarto, desenhar o teu retrato fiel, do contorno das tuas pernas e coxas, mas as tuas mãos eram pássaros na noite, esqueci-me de Freud, de todos, embora os usasse frequentemente, como desculpa para me acalmar, e outras como conselho do passo a seguir, se era para acontecer, se se iria proporcionar. A esplanada era o cenário, a desculpa perfeita para te ver chegar, eu com o nariz nos livros, no curso de fotografia, mas cá dentro era a poesia que se havia de firmar. Os ângulos cegos, a perspetiva, a objetiva e as lentes, era urgente suster o teu olhar, gravar tudo, não fosse tudo acabar, de repente, como se do mundo viesse uma enchente e te levasse para longe. E depois, foram muitos depois, entre convites para Guimarães, para a natureza, para a gelataria na Foz que era aprazível ver o mar contigo como imagem de fundo, que a moldura da memória não ignora o contexto e a motivação entre as linhas do meu pensamento racional e as batidas urgentes do meu coração, galopando no peito. E naquele passeio, onde fomos meros voyeurs, de boleia, na parte de trás do veículo, o Francisco ao volante e a Ana no lugar do morto, fizemos muitos quilómetros, muitos países, soou-me a cinco minutos, deste-me o meu primeiro beijo e esqueci Freud, Hemingway, a fotografia, a ansiedade do Rui, a desconexão chamada família, esqueci até que tinha medos, esqueci que era menina, entre a tua boca e a minha só pude registar a eternidade. E depois, muitos depois desse beijo, tu ainda estavas lá, segurando a minha mão, ancorando-me ao teu peito, do alto do Monte Crasto ao alto do Castelo em Moimenta, e eu continuava menina por dentro, mas por fora já se notava em mim que a mulher não demoraria a chegar, a fazer a sua entrada na alegria vinda a fazer poiso, não como me repetia a minha mãe, a ilusão e a fantasia, a maldição de repetir a sua vida, que ao teu lado acreditei que fosse como um estado diário de ser. E depois, bem depois, na dor da perda, estavas lá, o avô Rodrigo despediu-se da vida, da terra, dos humanos em redor, e era comigo que estavas. E deste nome ao silêncio, fizeste-te presente constante, e depois, logo depois, a terra quis comer a minha alegria, toda, de um só trago, de um só golpe, como já fizera antes, que o Ruizinho se despediu, quando a alegria pairava como um céu de Verão, a terminar a estação dos frutos, o fruto se sumiu terra adentro, um outono sedento, e nessa altura em que também eu quis partir, tu estavas ali, para me segurar, para me arrancar à dor consecutiva, ao pesadelo que vingou e ofertaste-me o todo de ti, e defendeste-me quando a primeira chantagem chegou, quando as emoções corriam pela casa, se sustinham entre o teto e o chão, onde tudo era lembrança da criança que saturno me roubou. E depois, cobriste-me de beijos, de abraços e de colo, dia a dia, ano a ano, a dor foi sendo substituída pela saudade, e a saudade nunca morre. Soube-o quando perdi o meu pai, sempre soube que quando nos roubam a esperança, por mais alianças que façamos com o futuro, o decreto de perda é interno, caminha connosco para todo o lado, assim como a mais bela memória tua que prossegue, e depois, depois, perdi-te e quando te perdi, perdi-me, tantos anos, tantos, mais que os dedos das mãos e dos pés podem contar, perdi-me até me encostar à parede, até olhar o espelho, até me catapultar na praia do medo, em cima de um rochedo no Castro de Sampaio, onde acreditei ter enterrado as dores guardadas, junto com as dores presentes, todas as dores convivendo, naquela tarde, todas sobrevoando o mar a pique, a capela, o castro, enterrei-me nesse dia, quando a traição me chegou às mãos, que era oficial, que vinha do que eu considerava ser mais leal e fiel. 
E depois, muito embora continue a revisitar os filósofos e as liturgias, Freud, Jung, Espinoza e tantos outros, sei que quem fui ficou algures, entre o Castro de Sampaio e o existencialismo de Sartre, com a dor que acompanha a agonia de ver dias a nascer, sem a tua companhia. Afinal, a eternidade não precisa de esperar. Nem eu. E primeiro a alegria estranha-se, depois entranha-se e depois, bem, depois, vem alguém dizer-nos que era tudo uma peça de teatro, que era uma simulação, um ato de vileza, tal como me tinha anunciado a minha progenitura. Que a alegria não é vitalícia, que o amor não é eterno, se não puder olhar os teus olhos nem usufruir da tua companhia. 
E depois, os abutres rondam a noite, espreitam os meus pensamentos, e depois continuo a ser a mesma, a guardar só o que é bom de guardar, a viver isolada, a sonhar acordada, porque perdi todas as alegrias, mas ainda me resta a tua fotografia. E é ela que me salva e me empurra para mais um dia. 

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