Rosenhan e a inversão da patologia

 



 David Rosenhan on Being sane in insane places

O looping de falsos positivos, desta experiência assustadora de David Rosenhan persegue-me desde os tempos de faculdade. Por esse motivo, arranjei forma de a inserir nas aulas de psicopatologia geral, para que os meus alunos entendessem os meandros da desumanização que a técnica "rigorosa" manipulada induziria, induziu e ainda induz, erradamente, a diagnósticos e consequentes prognósticos de doença mental. Tornando o ser humano numa redução de um conhecimento, de si mesmo redutivo. Na altura, o documentário da BBC estava dividido por episódios e alarmou a psiquiatria e a psicologia. Alterando a forma de avaliação e fundamentando o livro de Óscar Gonçalves (Como tornar-se doente mental) e o prefácio de Pio de Abreu (e a fronteira ténue entre a saúde e a doença mental). Este continua a ser um dos meus livros de cabeceira, pela inteligência associada ao humor. 

A psicologia, entre muitos outros ramos de conhecimento, é uma ferramenta útil quando associada à necessidade de praticidade do pensamento. Uma ligadura entre pensamento e ação. No tempo em que exerci docência técnica sobre saúde mental, a alunos entre os quinze anos e os vinte e três anos, para formar técnicos de apoio psicossocial, lecionando a disciplina de Psicopatologia Geral, lembro-me da cara de alguns dos alunos, divididos por turmas de primeiro, segundo e terceiro ano. Os manuais, construí-os eu, todos eles, bem como os testes de avaliação. Em conversas informais, podia entender que havia na cabeça de muitos deles, ideias erradas sobre a disciplina de psicologia. E falávamos de história da psicologia, antes de entrarmos na psicopatologia geral e específica. Entre essas ideias, duas ou três eram as mais vinculadas. Os psicólogos eram uma espécie de bruxos que lhes queriam arrancar os segredos que guardavam, a outra é de que eram inúteis, quando as situações eram realmente graves, ou pior, chegavam sempre tarde, referindo-se a episódios de suicídios, que a maioria deles conhecia, pontualmente, entre a sua geração e a dos irmãos. À medida que os temas iam sendo debatidos, podia ver-lhes o interesse diminuir ou aumentar, dependendo das temáticas. O que sabia é que todos queriam entender as suas debilidades e fortalezas, a sua luz e sombra, bem como a dos outros e isso era o suficiente para lhes abrir o apetite. E se no princípio, lhes pareci rígida, porque quis definir os papéis sociais que desempenhávamos todos dentro de uma sala de aula, foram descontraindo à medida em que me viram como uma deles, uma estudante, que embora exigisse trabalho, dedicação e educação, tinham que se dirigir a mim usando o você e nunca tu, viam-me fazer o mesmo com todos eles, tratava a todos eles por você, tentei sempre que entendessem e não decorassem a matéria. Usando casos práticos. Recorrendo a filmes, documentários e debates. Visitas de estudo. Relatórios. Testes. Acompanhamento de estágios e esclarecimento de dúvidas. 

Nunca lhes disse que estava desapaixonada da psicologia. Mas estava. Que a minha paixão pelas matérias se estancava quando, na prática, o modelo ou teoria que lhes ensinava no contexto histórico, sobre o sucesso das equipas multidisciplinares não funcionava ou ficava tantas vezes aquém. Dizia-nos o modelo que a aposta era na saúde e não na doença, daí a possibilidade de reabilitação das patologias, levando os pacientes institucionalizados a serem reintegrados na sociedade, com apoio complementar das equipas, na respetiva reinserção social e laboral. Que no caso das toxicodependências, a aposta na prevenção primária, secundária e terciária produziria milagres, que a promoção de bons hábitos, associado a estas prevenções, evitaria gravidez indesejada, doenças venéreas (sexuais), que a socialização e a obrigatoriedade escolar evitariam o desemprego, o recurso ao escapismo, o risco de duplos diagnósticos, via toxicodependência, enfim, que a equipa multidisciplinar composta por vários elementos, desde o psiquiatra ao psicólogo, do enfermeiro ao nutricionista, do assistente social ao educador, todos alterariam o rumo com que a saúde mental (ou a doença mental) seriam tratados. O modelo estava correto, a sua aplicação deixava a desejar. Esqueceram-se de falar que os vícios institucionais e as cunhas, as competições entre profissionais e as animosidades não seriam contempladas e que os pacientes não deixariam de ser o processo xis ou ypslom, o diagnóstico psicose ou depressão major, e, em último recurso, a pessoa estaria sempre, por sua conta e risco. Apesar da boa vontade de muitos, o modelo que ainda vigora e vai traduzindo resultados ambivalentes, diz-se que por falta de recursos económicos ou de recursos humanos, ou de quaisquer outras faltas, é o que temos. A culpa não é do modelo, a culpa não é do paciente, nem da doença, nem da saúde, nem do dinheiro, nem da competição, e menos ainda da competência. O que não foi contemplado pelo modelo é que somos todos iguais, todos humanos, demasiadamente humanos e o erro faz parte do progresso, no processo. Retire-se a pretensão de sermos deuses, de sermos fisicamente imortais, da pompa e da arrogância com que se vestem as classes sociais, retire-se o clubismo, o populismo, a escravidão às crenças, a bajulação aos opulentes, os privilégios e todos os ismos e tapetes vermelhos ao paupérrimo, acabaremos todos, deitados na caixa ovalada ou retangular, na pira, ou na vala, o jogo da vida a confundir-se no logro da morte. Para que a saúde mental e física se operasse a um nível generalizado, teríamos que amar ao próximo como a nós mesmos e nem isso sabemos fazer e se sabemos, ficamos por aí, porque o umbigo do outro cabe a ele amar. Temos de olhar o mundo sob a perspetiva da saúde, sim, mas entender e explicar os mecanismos (estratégias de coping) e os preciosismos (ferramentas de conhecimento adequadas) e nos focarmos na globalização do bem-estar. Já ouvi muito boa gente falar de altruísmo, mas poucos vi o exercerem. E engordam-se chavões da empatia, mas o compadrio continua, a marginalização efetua-se todos os dias, basta olhar para os centros de emprego, para os tribunais, para as câmaras, os parlamentos, carregados de gente cheia de boa vontade. A grande maioria de estudantes da via profissionalizante são jovens com expetativas de futuro ensombrado. Muitos deles, se pudessem, estariam na faculdade, estariam no teatro, nas oficinas de mecânica, nos campos de futebol, nas pistas de automóveis, a conduzir balões, a fazer cinema, a cozinhar, a dirigir equipas, a ensinar, a jardinar, a cantar, a dançar. Quando foi que começamos a castrar os humanos? Quando foi que instalamos o sistema de manipulação ou de abdução no planeta? Foi quando se descobriu que podíamos viver melhor que o outro? Foi certamente, quando se descobriu que os medicamentos que não curam e, que, ao contrário, adoecem os humanos, mas mantêm os doentes fidelizados à doce ilusão de prolongamento da cura, que é a escolha entre tirar a carraça ou ficar imune às carraças. 

Precisamos olhar com uma certa clarividência, aquela parte de nós que se chama intuição e que nos remete para o conhecimento interior de nós mesmos. A racionalização pura do sistema psicológico e psicopatológico necessita de um outro olhar, menos técnico, mais compreensivo, mais inteligente e menos burocrático. Para mudar o social coletivo, necessitamos olhar dentro. Quem somos, porque somos, quem nos faz como somos. Encontrar a "chave" desse eu interno que possa fazer-nos aceitar que somos todos iguais dentro das diferenças que nos particularizam e nos tornam seres únicos, que todos precisamos caber na realidade coletiva, na qual nos sintamos representados. Que a psicopatologia não é um lugar de exclusão, nem de rótulos e nem de reis ou mendigos. Que cabe a todos, a cada um de nós, intervir na mudança coletiva e que só o podemos fazer, quando realizamos, finalmente, quem somos, com as nossas virtudes, defeitos e traumas. A mudança que queremos ver refletida no todo, convém ser enxergada e operada em nós. Que o julgamento fácil nos conduz a limitações, que nos faz, na maioria das vezes, projetar nos outros os nossos receios e partes de nós mesmos, que não promove a mudança, mas sim a continuidade do que pretendemos alterar (a psicologia inversa pode ser um exemplo disso, que entre outros campos, coexiste no marketing), nos campos relacionais, e que nem sempre se traduz numa mais valia, que o estigma se assemelha a uma tabuleta de intransigência contra a diferença, quando o que devemos zelar e salvaguardar é essa diferença e o respeito por ela, que auxiliar o outro é a capacidade de estender a compreensão a um campo mais lato de que o limite do nosso umbigo, ou seja, a empatia e a compaixão são, ilimitadamente, recursos mais ricos, satisfatórios, garantem resultados terapêuticos efetivos, bem como o diálogo e abertura ao progresso e melhoramento sociais e que, ao convergirmos com o outro, estamos, outra vez, a alargar o campo de possibilidades na nossa própria vida. É uma questão de matemática relacional afetiva. Uma soma que acrescenta e não subtrai. E é isso, também, a psicologia, não só métodos, teorias e técnicas, mas também o que se não vê e deve estar presente, a humanização da psicologia para a equação da diminuição da psicopatologia coletiva. Se ser saudável, física ou psicologicamente significa abrir o campo mental ao entendimento de nós mesmos e do outro (a gestalt do ser biopsicossocial), a particularização de sintomatologia deveria ser soma das partes, que não necessitariam de diagnóstico que é redutor, mas sim do prognóstico e compromisso, muito mais conciliadores e positivistas. Ao atravessar a incerteza de um futuro, a insegurança e a fragilidade de um meio adverso, a competitividade do desconhecido, somos todos iguais, resilientes ou incapazes. O que nos torna únicos e desenvolve em nós a motivação, patrocinará a saúde mental. E se, ao transformarmos a ponta do iceberg do tecido social, onde os dramas se desenvolvem, conseguimos desdramatizar o meio, estamos a promover saúde, transversalmente. E, afinal, o que eu não disse aos meus alunos e deveria ter dito é que não gosto de é de ver progressão nas doenças mentais, e a psicologia associada a outros ismos tem em si a capacidade de exercer a mudança positiva nos meios onde circulamos. Eu aposto na remissão das patologias, tendo em conta a capacidade ilimitada de desenvolvermos a compaixão e a empatia no futuro.

Não somos só o que se vê, não somos limitados. Precisamos de humanizar a sociedade através do olhar menos clínico (menos cínico) e mais realista, menos preconceituoso e mais humanista, se queremos erguer sociedades saudáveis. E a inteligência para isso, nós temos. Já só nos falta o compromisso e a vontade. Quiçá o vulto enorme da humanidade elevada à potência do divino em nós. Prefaciando António Lobo Antunes: 

"Nós somos casas muito grandes, muito compridas.

É como se morássemos apenas num quarto ou dois. Às vezes, por medo ou cegueira, não abrimos as nossas portas." Diário de Notícias (2004) António Lobo Antunes

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