Com a praia do amor nos olhos rasos de água

 




Eu via em mim, finalmente, o handycap, a vulnerabilidade pela qual me tinha conduzido, diversas vezes, à mesmíssima encruzilhada, tão bem conhecida, tão mal percebida. Je ne sais pas porquoi. Afinal, as respostas que haviam tardado não eram da culpa de Deus e nem da ausência da graça do espírito santo que, eu teimava, residiam no exterior, mas da cegueira obtusa e persistente de não me querer ver, nessa perspetiva de cobaia, da qual resultariam anos, experiências extenuantes, ricas em sofrimento dispensável. Queimei na fogueira das vaidades os imensos registos onde me via alegre e inconsciente. Egos que não sobreviveram as chamas. Quando sabemos quem somos, não aceitamos nenhum menos ou mais, qualquer menos ou mais que venha subtrair a essência plena do nosso conhecimento atingido. As experiências dolorosas serviram, no final das contas, para chegar a este consenso entre mente e espírito, entre corpo presente e cansado e a consciência habitada de que merecemos mais, melhor, sim, de insuficiente, que assim me vira, me houvera dado conta não só da minha suficiência, mas do amor que me habitara, não obstante qualquer das encruzilhadas vividas até então. Nada era permanente e nem adquirido, que a vida obedecia a ciclos, onde nos movíamos como marés cheias, vazando num outro lado, na constância das intempéries e na modulação do querer. 

Podia, finalmente, abraçar as minhas debilidades tornadas fortalezas à lei da forja e da dor. Podia reconhecer-me como uma guerreira que, muito embora cega, jamais baixara a guarda, nem por mim, nem por outrem, nem por causa ou coisa em que acreditara. Esse era o meu valor. A valentia de assumir ser pequena nas dimensões e estatutos sociais exigidos, mas enorme perante os meus ideais constantes. Assumindo inteiramente o meu ser. Nada fora em vão. Nunca é. 

Como numa maré vaza, onde os barquitos se ancoram na preguiça da valsa das águas, ou se tomam de furores e procuram águas turbulentas e abundantes de crustáceos, homens calcando as areias e musgos, nas suas galochas, auxiliando-se de reflexos rápidos nos braços, de baldes e facas, perscrutavam lapas e mexilhões nos arredondados calhaus marítimos, e eu olhava o espetáculo da humanidade como a observadora de um tempo que não há-de voltar. Decorei as cores do céu que teimavam em declinar para o inverno, decorei a mansidão das nuvens, não obstante a cor e peso, decorei o voo das gaivotas no limiar de um mundo por acontecer. Vi o amor em mim, avassalador e crescente, harmonioso e cálido, correr o horizonte e atingir, como destroços naturais, todos os demais, toda a paisagem. Pareceu-me que a alegria havia retornado a mim, contagiando-me consecutivamente, uma e outra vez, devagar e demoradamente. A observadora narrando a paragem de uma ampulheta que trazia augúrios de negrume, como a densidade das nuvens e do ar circunspecto dos homens dos noticiários televisivos, das corrupções ativas, da política decadente. Que ali, se estivessem ali, tudo o que poderiam receber, era a alegria de um mar rendido aos socalcos humanos, de um arco-íris insistente e duplo que não se rendia ao voo ou chilrear dos pássaros e nem ao gemido das ondas contra os rochedos. 

Ontem queimei as memórias, os habitáculos, as imagens que vacilaram anos entre os meus dedos medrosos e os meus olhos cegos de tanto querer ver. Ontem morri-nos. Ontem, enterrei-nos num círculo pequeno onde cabiam somente essas imagens encolhidas pelo fogo, diminuídas pelo calor extenso e incontrolado do papel de cor face ao queimar dessa ampulheta que debitara o último grão da minha paciência no tempo de cronos. Queimei-nos, mas nem essa vontade de liquidar a outrora existência me foi cumprida, porque matando o passado, não escoara o amor, que se havia sustentado de fé, imagem nenhuma ou o seu desaparecimento me devolviam a promessa que rasgara aos espíritos que caminhavam comigo. Ali estava ele, intacto e desavindo, fogo crescente do espírito que se apresentava, sem imagens e nem suporte mental. Igual, sempre igual, te vi desfilando diante dos meus olhos de cega, negando-me a possibilidade de extinção, que tudo tem o seu tempo e porquê, que nada acontece sem que seja previsto, de improviso, e deixei que as minhas lágrimas se unissem ao meu sorriso, à contemplação da praia, que se unissem à maresia, aos baldes de mariscos, à curvatura das cores do arco-íris, ao limiar suave e ondulado do peso das nuvens sobre a maré vaza. Acomodei-te em mim, como se ao esvaziar-me das coisas, te tornaras maior que as coisas, que te tornaras evidente a elas e, finalmente, te pudesse entender na perspetiva angular do mestre. Ao que resistes, insiste. Peço-me rendição e a maré sobe, as algas cheiram a iodo, as gaivotas altaneiras rasam o voo, antes que me volte para os edifícios onde a poesia se sente desconfortável e desamparada.  

Volto-me devagar, imagino os homens adiantando as galochas no sentido da praia, com os seus baldes cheio de espuma e de esfrega, de utensílios e de rega, e as pequenas embarcações fazem a vagarosa aproximação à terra. Neruda, certamente, passou aqui ao lado, que lhe senti o cheiro de lavanda e de cigarro, e eu ergo os ombros, envolvo-me no meu próprio abraço, ao fechar as abas do casaco e subo as dunas que me separam da civilização e da constatação que a vida não se dissolve, absorve-se no sopro de respirar entre tempos musicais e pausas, entre silêncios pesados e ocasos. O esquecimento não é pra todos. O amor também não. O que é imperativo se faz presente, enquanto largo as minhas pegadas nesta areia húmida e te carrego no colo dos meus olhos, na lassidão da minha esperança que, parturiente, se há-de assegurar de um canto escuro onde voltar a ser luz e romper as amarras da omissão, onde me querem acorrentada. 

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