O fogo interno do self

 




Eu compreendi, depois desta noite, depois da sensação que me ficou deste sonho, depois desta visão do além, que somos mais que propósitos, que direções, que trémulas dores existenciais. Que inspiramos os outros, que somos inspirados por eles, que carregamos cruzes como se fossem medalhas e medalhas que se transformam em cruzes, que nos empurram para a frente e para trás, que necessitamos de coragem para sabermos compreender essas oscilações humanas, e de tolerância para apaziguar o outro, de forma a entender que todos caminhamos às cegas e que estas qualidades reúnem a paz e que ela é divina, e que a paz interna só pode ser produzida quando cada um de nós a libertar para o externo, a fim desta se materializar, que trazemos a aura contagiada por todos os que já partiram, que não há um só ser, mesmo o mais facínora na história da humanidade que não tenha sido beijado pela sua luz, protegido e inspirado pela sua capacidade inerente, sim, inerente, inerente e singular, que cada um faz o caminho, se desvia do caminho, atalha e intermedeia o mesmo, e há uma certa hora em que  luz cruza o nosso espaço e pode ser a dormir e pode ser acordado, e até pode ser enquanto atravessas uma estrada apinhada de gente, ou desolada, desta mesma civilização e que é tão verdade que deus está em toda a parte, que deus nos sorri todo o caminho, que chora as nossas dores connosco e que nos ampara quando a nossa marcha tende a quebrar, a se demorar, nos passos que ainda nos falta dar. Serei mais um, atingido por um raio na multidão de seres que povoam o universo e que não vemos. Serei mais um ser alienado no conjunto da amostra.

Fiz muitas coisas de que não me envergonho e algumas de que me orgulho. Tentei ser e estar no mesmo plano de integridade, depois de pensar que eu já era eu, que já tinha mais consciência que a menina que viu coisas pavorosas, porque houve muitas meninas e meninos que viram coisas pavorosas, normalmente levadas a cabo por adultos que, também eles terão vivido coisas pavorosas. Mas não é de guerra, este texto, talvez seja de guerras, das várias guerras, pois nenhuma é mais difícil e mais duradoura que as guerras da nossa consciência, em que lutamos connosco, como se pudéssemos nos dividir em dois corpos e tentássemos convencer o inimigo da nossa visão pessoal. Essa é a maior aventura da nossa vida, quando se apaziguam as coisas dentro de nós, quando deixamos de lutar com os nossos fantasmas, quando deixamos de fazer braços de ferro à verdade e à ilusão ou à nossa própria forma e medida de avaliar tudo. Que todos trazemos uma particularidade que nos distingue, que o ferreiro mor não faz duas formas iguais e que à nossa revelia, nos confronta, num determinado momento ou em muitos, que as guerras podem ser longas, cheias de batalhas e de capítulos ou podem, dependendo do que carregámos ao descer, ser mais sumárias, mais precisas e objetivas, mais condensadas e os propósitos iniciarem quando nascemos, ou depois mais à frente, ou muito mais à frente, porque nem todos olhamos a luz, nem todos nos conscientizamos da mesma maneira, que precisamos de testes, do auxílio de personagens que surgem quando menos esperamos, de onde menos esperamos, que se atravessam, se cruzam, que se intercetam para participar do propósito, de um ou de vários propósitos, de um ou de vários personagens, de um ou de vários caminhos. E todos sabemos que lá chegamos, quando lá chegamos. Porque o invisível se torna visível, a escuridão se vê iluminada, porque somos todos tochas humanas na vida de outros, porque quando nos unimos ao todo, realizamos o plano proposital. A consciência, mais que orgânica, a original, que surge da alma e que se une à nossa mónada. A consciência que se não pode adiar.

E a consciência tem sempre um tempo veloz, que não se chama futuro. Nem passado. A consciência pode insinuar-se sem que possamos dizer que foi um fogo de artifício, que chegou e deu aviso, que atendeu ao compromisso do além ou que, o que quer que pensássemos, nunca se perturbou do momento fugaz em que surgiria. Acontece, como agora, que lá fora chove o orvalho sanjoanino, que lá fora, as coisas acontecem de uma determinada maneira e que, ao olhar bem devagar para a planta que rebenta em caule a terra e fermenta a seiva da vida, também cá dentro, em casa, também cá dentro de nós mora, acorda ronrona e desperta, a consciência dentro da mente, que se quer aberta, e como o caule, vai rebentando as capas de proteção e furando redes de ilusão, também dentro de nós o dique rebenta, as águas férteis se revelam simples e sedentas, invadem até os sítios de nós menos povoados, fazem alarde, provocam-nos para nos dizerem eis-nos chegados aqui. E aqui, sem tempo de passado ou futuro, um aqui residual e presente brinda-nos de eu autêntico e se faz gente, e não aceitamos mais as ilusões dos outros, as perturbações dos outros, porque ao olhar-nos, surpreendidos pela simplicidade, passamos a viver no fio da verdade, a esperar de nós somente autenticidade e, quando essas operações nos conduzem o sangue, produzem novos clarões, perspetivas e constroem, dentro de nós esperanças novas, luzes frescas que se começam a somar a outras que não víamos, que ainda não estávamos preparados para o fazer. 

Um dia, acordamos para o despertar total, reconectando com outras linhas de tempo, com o objetivo primordial que nos trouxe aqui. Nesse dia, vamos poder ver o jardim, o nosso, onde romperam os botões de rosas, margaridas e gerânios, vamos poder usufruir da vista das fontes que trasbordam e que se não podem cortar, separar, calar. Esse será o tempo de celebração. E acontece assim, sem que possas prever, premeditar, anteceder. E nesse dia, ganhas asas. E começa tudo de novo. Recomeçando em alguma parte profunda de ti. 

Comentários

Mensagens populares