O monstro precisa de amigos
Era manhã de uma quase primavera, assim, sem mais nem pra quê, há-que deus que a vida era injusta, que a sua irmã o humilhava, que não podia compreender essa desfaçatez à luz de toda a sua bondade, que odiava quando ela voltava de férias para a sua própria casa, que a humilhação era continuada, que as mentiras se propagavam umas nas outras, alinhavadas, com um fim determinado. Fingia-se maltratado, na boca trazia uma desculpa pronta para apelar à tonta da sua prima. Arquitetava planos maléficos, não podia continuar a se deixar enredar pelas manipulações dos outros. A criatura, de verruga no nariz, acreditava que o mal que sofrera lhe seria retirado p'la raíz, se aplicasse o mesmo caldo que tinha recebido da família nuclear. E contava, de lágrima em riste, apelando à empatia, usando-a como alvo para resgatar uma piedade a que chamava verdade. Contava tantas coisas que, por mais que a inteligência os acompanhasse, era quase impossível não acreditar naquilo que dizia, contextualizando a trama que há-de vir, no futuro, a lhe servir de cama.
Cortava as unhas à velha, lavava as costas e os pés e até aguardava vez no centro de saúde desde as três, quando ainda todos dormiam. Tinha visto a sua adolescência lhe ser roubada pela imposta tirania e egoísmo de uma mãe que habilmente manipulava, punha e dispunha, sem sequer perguntar se lhe era aprazível ou indiferente o disposto destino que lhe havia preparado. Como recompensa, por ter tratado da condessa, por ter sacrificado toda uma vida, haveria de ficar com as benesses da tia, a meias com outra bandida, que se simulava crente na igreja, sempre na linha de frente, farinha do mesmo saco. A revolta constrói-se assim, nos labirintos da mente, e cresce sem causa aparente, nos inoportunos desejos da sociedade demente. Ele mendigava que o escutassem e fazia tudo parte do plano. Casar-se, ficar com as propriedades que lhe não eram próprias, porque também ele tinha abdicado e perdido lá atrás, no passado mui mal resolvido. Manipulação, tinha conseguido o mestrado nessa arte do bandido, através do que tinha sofrido na pele. Fizeram o mesmo com ele. Os ladrões somavam-se na família como mobília vitalícia, inata e nessa malícia de se vingar, escolheu, o ingrato, a parte que o tinha acolhido, diz o povo na sua sabedoria e arte, cuspir no prato que lhe deu de comer.
Andou pelos vales das trevas, dizia, com factos rocambolescos, burlava por onde passava, roubava a verdade à tia ora a prima, ora a outros, colorindo de ingenuidade a sua carcaça doente. E até arquitetava planos a longo prazo, de ganhos que se ambicionava almejar, era um artista de trancos e barrancos, na aparência vestia-se de vulnerabilidade. "Na tua fraqueza, está a tua força, rapaz!" Parecia a voz de Deus, mas era o anjo demoníaco no ombro que lhe davam o entorno para assim continuar procedendo. Era assim ardiloso, mentiroso, tecnocrata, e quando as coisas não lhe corriam bem, a culpa era sempre dos outros, esses outros com quem convivia, esses outros que o amparavam, esses outros a quem dizia ter sido vítima de moléstia, abuso e heresia. E para fugir de um casamento, usou de um golpe baixo, a sorte foi que era recíproco. Uma gravidez oculta, salvou-o de um casamento que por mais que arrastasse, não tinha fundamento. Havia casado para satisfazer as expectativas dos outros. E o rolo continuava, pois, este aclamado artista recebeu o retorno dessa escolha pouco sábia, ficou sem abono dos anos que trabalhou. Casara com uma mestra nas artes de vingança e percebeu parco e tarde, que afinal, os lobos em pele de cordeiro abundavam no mercado, e ele só mais um, na cadeia de interesses, o do meio. A cobardia era o seu nome e um talão no paletó fez aquilo que ele não sabia fazer. Ser homem, ter coragem. Falar da sua verdade. A somar-se a tudo isto, desde humilhações continuadas, desde roubos de salário, desde pedofilias envergonhadas, desde mortes contratadas, tudo lhe havia de acontecer, para refinar as suas artes de engodo. Ele era o lodo, mas quem o fizera era o verdadeiro lobo que comia capuchinhos. Dizem que o diabo anda à solta, tem sido encontrado várias vezes na vida. Tem sido alimentada a sua fome, tem sido tratada a sua ferida. Puro engano. Nunca se curará o dano, depois do programa instalado. São só unguentos e paliativos, porque a confiança é um bem inegociável que já desconhecem. Deturpava a uns para ficar sempre bem na fotografia. Era pródigo na arte de enganar. Este tipo de arquétipo é capaz de muito mais, mas, na verdade, quem constrói estes sociopatas deveria estar a cumprir pena lá na cadeia de alcatraz. A miséria intelectual e emocional tem contornos feios, onde os personagens se apropriam dos desejos e, custe o que custar, sob qualquer pretexto e meios, se tentarão viabilizar. Não há escrúpulos. Não se iludam, a virtude fica aqui descontextualizada.
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