Provavelmente

 Daughter




Provavelmente, voltarei a ver-te, e não serei mais a mesma. Se te voltar a ver. Condicional. Digo provavelmente, porque todos mudamos. Num piscar de olhos, a circunstância interpõe-se entre a porta e o pé. E se te deres ao trabalho de voltares lá atrás, vais recordar-te do que te disse, sobre a forma pouco usual de como chegam a nós, eles, os espectros, os momentos chegam da mesma forma. A energia passa a frincha da janela, atravessa-se na frente dos olhos, não seria compreensível dizeres, por exemplo, não vi. Ou então, se o fizesses, estarias a mentir-te a ti. Como quando negas o afeto, por te não dar jeito, por não estares preparado para a luta, o arrebatamento de te veres, provavelmente, diante do espelho. Negares o encontro face ao interno que conheces. Não te revelarei do que sei. Apenas disto que te falo, que é um caso concreto. Porque viste aquela densidade, sem qualquer dificuldade, entrar pela frincha, rasgar sem qualquer estrondo e ficar diante de ti, e todo aquela opacidade que vias redonda, a assumir nova forma, como se estivesse a esticar pernas e braços, como se tivesse cabeça e olhos, mirar-te, esticar-se na vertical, como para que compreendas que pode, inclusive, trespassar-te e nada demais acontece. O mundo não se abala, a vida concilia-se, da mesma forma. Só não deves fazer de conta que não estavas lá. É muito plutoniano! Tal como o Jazz, que rompe todas as escalas num raiar de fôlego, insinua-se diante de todos os que escutam, e eu sempre escutei, que isso de ouvir é algo muito raso, ou como dizer amor e não sentir a surpresa, a sofreguidão que se te assoma às faces, ao desejo de prolongamento, ou o doce aroma da primavera, e sempre me inspiraram as tempestades que anunciam o romper de qualquer coisa. Que se abalem as estações. Às vezes é só do momento em que estás. 

Provavelmente, nem tu serás mais o mesmo. Que te nasceram ideias novas e novas formas de sentires o vento. Quiçá, novas inspirações e novos instrumentos, quem sabe cordas e sopros do oriente, quem sabe tenhas adotado um novo animal, ou uma nova forma de vestir, ou até um novo eu para te vestires no futuro. Uma nova forma de queimares o crono que te resta! Que sei eu, daqui de dentro da masmorra, num castelo cheio de quartos desabitados, que te procurei em todos eles, pra saber de ti. E em todos eles, te encontrei em partes, como se fosses apenas um puzzle antigo que pausei! (ah, pudesses ter sido isso, somente isso e nada mais do que isso)...

 Estou certa, contudo, de que mudou o desenho original, até a forma de te pensares e pensares a realidade, mas o que eu sei que não mudou em ti, sei-o por ter ficado em mim. Essa parte não soubeste mudar. Não o pudeste fazer. E nem eu. Ficaste aqui, como os quadros das casas abandonadas, que perdem a cor e se unem às teias de aranhas, ficaste em pequenas imagens de barcos que nunca abandonam o cais, por estarem presos na enseada, por ser mais forte a âncora que os estruturou ao lismo do fundo, por se não debaterem, acreditando estarem em mar alto. Provavelmente, dirias algo como "esse teu cabelo" como se estivesses a pensar alto nas velas desfraldadas de passado a que não queres ver sequer a sombra. Ou talvez dissesses "sinto-me aflito" ou poderias ainda dizer "estás nervosa" ou "estou nervoso", ou talvez até te faltassem as palavras para dizeres, casa, mãe, vida, suspiro, suspiras, e os teus passos continuariam a andar agitados pela casa toda, por mim adentro, sem que te apercebesses que já estarias dentro, dessa tua casa, que continuaste a habitar como um fantasma ou um náufrago, a que faltou a boia, a coragem, o ensaio de chegar dentro do que conheces por casa, por cima, em baixo, e  depois disso, todas as perspetivas te ocorreriam para gritares que acordaste, ou que é tudo um sonho, um pesadelo ou alguma coisa entre isso e outra coisa qualquer, no emaranhado de dias que não estiveste e que te esqueceste que eu seria ainda as tuas janelas e o sótão, o quarto, a cama e a mesa, as panelas e o alçapão, o corredor e a vênus das tuas escapadelas, ás vezes sim e outras não, onde o passado de ti ficou. E talvez te surpreenda se me ouvires o coração âncora casa música e tempestade a gemer, a tremer, a renascer e romper com as invernias todas que me sentaram em cima os anos e os outros, para me aprisionar, para me calar as saudades. Que virei do avesso todos os quartos da casa, que irrompi mar adentro, só para arrancar essa âncora coração casa grito que me algemou tanto tempo, o cobertor carregado de vontades dos outros, da cegueira, dos matadouros humanos, das aventuras clandestinas ilusórias que teimaste em viver, no contorno do teu rosto, no queimar do tempo, nos cortes que ele imprimiu no meu rosto, na tua confiança, e talvez me vejas fugir, partir todas as janelas e portas e desaparecer. Quebrar as estruturas migratórias, os sentimentos controversos da nossa memória. A tua fotografia continua a emoldurar a minha vida, gastas, eu e a fotografia, eu e a ousadia de mergulhar e acreditar que a âncora se libertará. Eu e a minha teimosia. 

Provavelmente, ouvirei a morte, sentando-se na mesa da cozinha, como ontem. Provavelmente, arrumarei a mente e imbuída do fogo do espírito, lhe servirei o melhor vinho, depositarei o meu coração num prato fundo, e verei a morte desfrutar a sua última refeição. Provavelmente, sentar-me ei ao seu lado, é bem provável que ela me olhe nos olhos e acredite que os meus se desviarão. Jogarei cartas com ela, e mesmo sabendo que perco, guardarei o último trunfo, na manga. Quem não receia a vida, quem abraçou o pai supremo, quem mendigou o sono eterno, quem almejou a luz amada, jamais temerá o outro lado. E quando derem as últimas badaladas da sua má disposição, lhe colocarei o trunfo na mesa, em jeito de oração. Não quero um último cigarro, nem o refrão gasto da nossa balada, jamais poderia pedir mais tempo que, de nada me serve na tua ausência, farei o meu pedido em conformidade com o desejado. Provavelmente, lhe pedirei que me deixe ver-te uma última vez, provavelmente me fará a vontade. Nunca se nega a última vontade a um condenado. E nesse último relance, ela se afastará, para melhor me permitir o usufruto dessa vontade final. Despedir-me do ser amado.

Provavelmente, será lusco-fusco, estarás distraído. Sem noção entre a dor e o vazio, a expectativa e o frio da ilusão que se corrompe. Num exercício claro, terei a minha vista privilegiada sobre ti.  E como não contas comigo, provavelmente te virá a pressa de fugires, apressarás os teus passos, e o teu olhar, ainda que escapando à luz do meu, abrindo a cortina do tempo escasso, te permitirás, ainda que a fugir de ti, ou de nós, um olhar e nessa última visão, me dirás tudo de ti, sem proferires uma única palavra. Posso adivinhar que estarás inquieto, face à minha paixão. Estarás pesaroso face às tuas próprias escolhas e colheitas, pedirás desculpa, sem nunca abrires a boca, mostrar-te ei, o meu amor incondicional. 

Provavelmente, poderás, então, confirmar que te guardei nos anos, e sorrirás uma e outra vez, porque te olharás ao espelho das águas cristalinas, quando tu e eu fomos, e recordarás então que tinhas sonhos que ainda se não concretizaram. O trailer encerrará com o presente, na oitava superior de deus. E provavelmente, te arrepiarás de saber que será a última vez que me verás. E provavelmente, terás a firme certeza de que o tempo passou por mim e te aquietou a ti. O contrassenso nasce entre uma dor e a liberdade. Ouvirás a música colar-se ao teu peito, dentro de ti o meu jeito de a sentir. Perceberás, então, que fui estrela do amanhecer, fui caminho e cajado, a tua casa, o teu quarto, a tua cama, o carvão para desenhares a lua que se insinuará através do coração, provavelmente será escuro e já tarde, provavelmente, verás muros e obstáculos destruídos, os que te impediram de me falares, que até então te toldaram a visão, provavelmente sorrirás uma última vez, a pedido. E tão provável como imprevisível, te darás conta que nenhum de nós ficou preterido no outro. Que continuo sentada nas rochas de basalto, no monte mais alto da tua cordilheira, continuo colhendo bagas e sanchas junto ao amieiro. E, tão certo como um e um serem dois, acordarás do sonho que te envolveu nas brumas. Amaldiçoarás os vermes que te corroeram e ver-me às ao longe, já na alba da madrugada. Sossegarás o peito, caminharás pelo estreito, tu navio, erguerás âncora e finalmente, numa mansidão de alma, com a mão no controle do leme, te assentará a paz, como uma luva, na tua calma e me libertarás. E ver-te às, finalmente, livre do amor. E eu serei o lismo que te segurou as emoções, que te acalmou nas tempestades, que se desmaterializa quando se cumprir a minha libertação. Provavelmente, assim será.

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