Do capítulo da Fenix Liberal
excerto:
"Pela primeira vez na história, as doenças infeciosas matam menos pessoas do que a idade avançada, a fome mata menos pessoas do que a obesidade, e a violência mata menos pessoas do que os acidentes.
Mas o liberalismo não tem respostas claras para os grandes problemas que enfrentamos: colapso ecológico e disrupção tecnológica. Tradicionalmente, o liberalismo dependia do crescimento económico para resolver, como que por magia, os difíceis conflitos sociais e políticos. O liberalismo reconciliou o proletariado com a burguesia, os devotos com os ateus, os nativos com os imigrantes e os europeus com os asiáticos, ao prometer a todos eles uma fatia maior do bolo. Com um bolo que crescia a um ritmo constante, isso foi possível. Porém, não é o crescimento económico que vai salvar o ecossistema global - pelo contrário, ele é a causa da crise ecológica. E o crescimento económico também não resolverá a disrupção tecnológica - ele assenta na invenção de tecnologias cada vez mais disruptivas.
A narrativa liberal e a lógica do capitalismo de mercado livre encorajam as pessoas a ter grandes expectativas. Durante a última parte do século XX, todas as gerações - fosse em Houston, Xangai, Istambul ou São Paulo - gozavam de melhor ensino, melhores cuidados de saúde e rendimentos mais elevados do que as gerações anteriores. Nas próximas décadas, porém, devido a uma combinação de disrupção tecnológica e falência ecológica, a geração mais nova já terá sorte se não sair a perder.
Assim, ficamos a braços com a tarefa de criar uma narrativa atualizada para o mundo. Tal como as revoltas da Revolução Industrial deram azo às novas ideologias do século XX, também as revoluções vindouras da biotecnologia e da tecnologia da informação exigirão, muito provavelmente, novas visões. As próximas décadas poderão caracterizar-se por uma introspeção intensa e pelo formular de novos modelos sociais e políticos. Conseguirá o liberalismo reinventar-se uma vez mais, como aconteceu no rescaldo das crises de 1930 e 1960, emergindo mais apelativo do que nunca? Conseguirão a religião e o nacionalismo tradicionais oferecer as respostas que os liberais não conseguem proporcionar, ou conseguirão eles usar a sabedoria antiga para criar uma mundividência atualizada? Ou será que chegou o momento de cortar de vez com o passado e fundar uma nova história de raiz que vá para lá não só dos velhos deuses e nações, mas também dos valores modernos nucleares de liberdade e igualdade?
Hoje, a Humanidade está longe de alcançar um consenso quanto a estas questões. Ainda atravessamos o momento niilista de desilusão e raiva, depois de as pessoas terem perdido a sua fé nas antigas narrativas, mas ainda antes de terem adotado uma nova. Então, o que se segue? O primeiro passo é aplacar as profecias de desgraça, passando do pânico para a perplexidade. O pânico é uma forma de soberba. Advém do sentimento arrogante de que se sabe exatamente para onde caminha o mundo - para o fundo do poço. A perplexidade é mais humilde e, portanto, mais lúcida. Se lhe apetece ir rua afora a gritar "vem aí o apocalipse!" experimente dizer a si mesmo: "Não, não é isso. A verdade é que não compreendo o que se passa no mundo."
Os capítulos que se seguem tentarão clarificar algumas das novas e desconcertantes perplexidades diante de nós, e como podemos agir a partir daqui. Mas antes de explorarmos as possíveis soluções para os problemas da Humanidade, temos de compreender melhor o desafio que a tecnologia representa. As revoluções da biotecnologia e da tecnologia da informação ainda estão na sua infância, e é discutível até que ponto elas serão realmente responsáveis pela atual crise do liberalismo. A maioria das pessoas em Birmingham, Istambul, Sampetersburgo e Bombaim têm apenas uma leve noção, se é que têm sequer a noção, do surgimento da inteligência artificial e do potencial impacto que esta terá nas suas vidas. Porém, não há qualquer dúvida de que as revoluções tecnológicas ganharão dinâmica nas próximas décadas, e que confrontarão a Humanidade com as provações mais difíceis que algum dia teve de enfrentar. Qualquer narrativa que queira conquistar a filiação da Humanidade terá, acima de tudo, de se mostrar capaz de fazer frente às revoluções gémeas da tecnologia da informação e da biotecnologia. Se o liberalismo, o nacionalismo, o islão ou qualquer outro credo novo quiser moldar o mundo do ano 2050, terá não só de conseguir explicar a inteligência artificial, os algoritmos da Big Data e a bioengenharia, como também terá de os integrar numa nova narrativa com sentido.
Para compreender a natureza deste desafio tecnológico, talvez seja mais fácil começar com o mercado de trabalho. Desde 2015 que viajo pelo mundo a falar com governantes, empresários, ativistas sociais e estudantes sobre a encruzilhada humana. Sempre que o discurso sobre inteligência artificial, algoritmos de grandes bases de dados e bioengenharia os deixa impacientes ou aborrecidos, em geral, basta-me referir uma palavra mágica para recuperar instantaneamente a sua atenção: emprego. A revolução tecnológica pode, em breve, deixar milhões de seres humanos fora do mercado de trabalho e criar uma gigantesca classe social inútil, levando a convulsões sociais e políticas que nenhuma ideologia existente sabe como gerir. Toda esta conversa sobre tecnologia e ideologia pode parecer muito abstrata e distante, mas a perspetiva bastante concreta de desemprego maciço - ou desemprego pessoal - não deixa ninguém indiferente."
In 21 lições para o século XXI
Yuval Noah Harari
foto retirada da web
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