Carpir caminhos

 


Tenho-te escrito tanto, não no papel, nem com caneta. Escrevo-te em todas as línguas e começo no esperanto. São os meus olhos que, passeando, escrevem no tempo, nas paredes deste tanque, no tapete que o rodeia, na cerejeira e no céu, por vezes, na vertigem da alegria, outras faço-o no persistente, no constante abismo em que me tornou a tua ausência física, e quando te escrevo, estou na janela mas não nesta, e sim na dos teus olhos, em função  contemplativa, montando de argila e flores, o puzzle do nosso encontro, e nunca sei se o amor que te dedico vibra em ti bem estar ou tranquilidade, se te empresta magia, e nunca sei se o vento te conta ou se te canta, se murmura ou se agiganta de gritos que a minha garganta cala, atade, arcade, quebrando longe, se sentes, porventura, a represa das lágrimas, se sentes o pranto do deserto da amorosidade que deixaste, ou se ambos, ou se te soa a paz que construo e que vem até mim, carregada de cansaço e exaustão, desta subespécie de embargo, de solitude buscada, se algum dia a poderias entender, no tempo, uma alfândega de solidão escolhida, a que chamam reclusão.  Na janela que é a menina dos teus olhos, desenhei um porto de abrigo que é o templo que me acolhe. Não há nele navios, senão âncoras enferrujadas, aguardando um convés, uma bandeira plutoniana, que teria que vir com Neruda e desfraldada, como é também a paixão que me assola, sem medida nem prazo de validade, onde uma brisa se transmuta em tempestade, rapidamente. Apoio as costas na lateral esquerda da janela, subo os joelhos na altura do queixo e deixo-me ir aquietando-me com os movimentos, ora pacíficos ora irreverentes, da natureza externa, através do bulício melódico que o vento produz nos ramos, e nos ramos internos, nas veias que me sustentam a vida, a paz interna. Desço novamente a outro plano, noutra linha de tempo, na qual só me é permitido pela memória seletiva e preservada. Tu tatuado na imensidão de todas as linhas, espaço e tempo, tu amor maior, saudade imensa, e às vezes, só desespero e ais! Que são o coro que acompanha a solenidade do teu retrato, da lembrança agitada em que te tornaste, invoco ancestrais, espíritos brancos que me socorrem e me aninham, ovo cósmico, repletos da compaixão que eu própria, sozinha, não me sei dar. E curam-me as feridas expostas, mas tu cavas dentro montanhas e serras, veredas, atalhos, e cavando te fazes mais dentro, mais dentro e mais fundo, infinito epicentro, que és junco e adentro e musgo suculento e te reproduzes multiplicado em planícies e planaltos, urzes e arbustos medronhos, encostas altaneiras e precipícios, leiras e sendas. Que esses teus olhos são a fonte da minha perdição, são montes, penedias, lagos e rios, são o horizonte percorrido, urgentes saudades metafísicas, deste mundo e do outro, onde plasmado e entupido, calado e de matéria ausente, te fazes gigante e fecundo, constante e profundo, e a minha criatividade e audácia, ao invés de te reduzirem a cinzas, a um álbum de retratos, te fazem e te desfazem, fermento líquido, massa sólida e gasosa dos meus olhos, repasto da fome que me devora, da sede que me sufoca, de ser resiliente e incapacitada para te esquecer, para te emudecer no corpo e na alma, e reinvento nos meus braços os teus braços, e do lasso e do frouxo, soldo a distância na união do peregrino devoto, de ser laço a vida toda, e fizeste de ti m mim, um país, um continente cheio de ruas, de travessias, de estradas, de caminhos, de avenidas largas e, tal como o Manuel dos Ornatos, escrevo o teu nome multiplicado no expoente da saudade e crescem em mim jazidas e muralhas, urtigas e navalhas, janelas e portadas, pontes e bagadas desse rumor que deixaste semente, que jorraste de repente, de repente sem dó e nem piedade, que não pediste licença e nem conhecedor te tornaste deste planeta mutante que vai invadindo, célula a célula, veias e artérias, autoestradas da miséria  da abundância de querer-te, que é querer-te tanto, sobrares em mim largo e grande, doce e intenso, fontanário e oceano e, sequer um dedo, um lábio, um abraço, um aceno, um texto forjado, um poema, uma mensagem única, um beijo, meu deus, um baú de ternura, um verso de poeta, uma dor emudecida, cheia de silêncio contido, parido grito de loucura, de perder a compostura e te deixar livre e lendário, carvalho sobrevivente ao holocausto humano, guardião do tempo, amante de eternidades feito. Digo-te, com o meu monólogo mudo, nada e tudo, desde que foste, qual diário impresso na pele, no mel das memórias que deixaste, devidamente polonizadas, semeadura fiel de nunca te fazeres ausente, só na carne, só na carne, que é densa e que não sabe erradicar sentimentos, cambiar-lhe remetente, carta urgente nunca entregue, ora calando ora verbalizando, o efervescente sentimento, do espólio do amor que me deixaste. Chegam já rumores de primavera, de calendários trocados, mimosas, maias, camélias e rosáceas já largam perfumes de mistério, e estas saudades tuas sem nunca se espraiarem devidamente, que fecundam anfiteatros e coliseus, pirâmides, totens, catacumbas e museus onde o silêncio deu à luz o grito da tua pele presente, do teu sorriso inesquecível, do teu corpo, dos teus lábios, do teu dorso nos meus braços, agora lassos, escassos, esquálidos e mirrando de ausência dos teus abraços. E cresces em mim, milagre e fantasia, em torvelinhos de magia, sincronicidades e geometria, apascentando o chão de uma primavera que não se finda, com tapetes de folhas mortas, com pétalas de rosas mirradas, com todos os poemas que me dedicaste, com todas as músicas compostas, trindades e compassos ternários, escapulários e grãos de mostarda, tempestades e um dedo de deus para me manter calada, quieta, amordaçada na suavidade de qualquer tarde, quer seja nesta janela, ou numa outra, que as minhas janelas são os teus olhos uranianos, que é através deles que meço as intenções humanas, que são os teus olhos as persianas do tempo, quando me fecho e me resguardo, quando acordo e me empurro para mais um dia e num dia, meu deus, num só dia se escrevem estações de saudades e décadas da tua ausência, apeadeiros de memórias recicladas e fragmentos da nossa história que guardei eu e, nos concertos em que me envolvo, me fecundo de ti, abrindo corredores nas veias, onde és oxigénio e seiva, onde és escala e te oitavas numa nota ou em mil acordes, num ritmo e numa melodia e, acompanhas os soluços do meu choro, sem nunca te fazeres presente. Que te edificaste mosto e néctar, escultor, esteta, poliglota, pintor, filósofo, músico e poeta e quando se fechou a porta, subiste à janela e me mostraste cavalos de troia e sarilhos, armadilhas e baionetas e bandeiras encarnadas e coros de velhas carpideiras e cornos de serpentes maliciosas e ainda assim, distante, te preservaste intacto, rompendo rotinas e alquimias, te mantiveste no leme, na longa cauda do cometa, no largo interno que me inquieta e me consola e me apaixona. Amar assim não pode ser pecado, nem esta ausência é sinal de fim. Tu continuas guardado, cá dentro onde te sinto todo em mim.

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