O essencial é invisível aos olhos





Quando olhava a casa dos meus pais, perguntava-me se, quando eu tivesse partido, os nossos filhos olhariam a janela do meu quarto, ou qualquer aposento onde tivesse permanecido mais tempo, se olhariam a minha lembrança como uma incógnita na vida deles, ou uma saudade líquida que se assomasse aos olhos e os deixasse inquietos. Tu ficaste ali horas, com a cabeça entre as mãos, a música continuava a tocar, as composições tornaram-se parte do ambiente. A música nunca se findava, dir-se ia que ali havia compositores que dedicavam a sua respiração nessa composição que se tornara eterna, quando associada às memórias que carrego de ti. A tua cabeça baloiçava, não ao ritmo dessa música, mas ao ritmo interno das dores que carregavas e eu nunca lhes dava nome. Nomes bonitos, digo. Eu sabia que elas tinham começado a habitar-te há muito, quando voltaras de uma viagem pelas florestas e bosques no norte do país. Nunca te abriste inteiramente, dizias que não era nada de grave, não negavas dores, mas retiravas-lhes importância e gravidade, porque eram tuas, que não tinham o peso que eu atribuía, mas eu senti-te e aos teus fantasmas que eram, a dada altura, quase reais. Hoje sei que eram mais reais, mais pesados, mais feios, mais concretos que a nossa vida em comum. 

Quando partiste, os gerânios morreram, e eu deixei, mas as heras mantiveram-se a emoldurar a casa, as janelas, até subirem as paredes e chegarem no ponto mais alto antes do telhado. E entre as heras, lá estava a tua janela, onde tinhas passado os últimos anos, entre livros e gatos, entre um velho piano e a lareira velha. E nada foi tocado naquele espaço. Já havia meses que te vi sumir, terra adentro, como todos, caindo naquele poço escuro sem regresso. Ontem entrei no teu aposento. Ontem. Alguma coisa me puxava ali, talvez para me arrancar do torpor em que fiquei com a tua partida. Hoje, não estou bem certa se o devia ter feito. Ou se o torpor do teu luto me conduziu. Ou até se foste tu que me vieste buscar e conduzir-me ao teu quarto. Ontem abri as janelas que rangeram, ontem os cortinados, os mesmos cortinados ainda baloiçaram pelo vento este. Ontem, subi as escadas, abri a porta do teu quarto e tive que reunir coragem para entrar. O teu cheiro ainda estava ali, o perfume da tua colónia pós barba, a fuligem da lareira no interior, o cheiro das tuas cigarrilhas, como se ainda só tivesse passado um dia, desde que te tinhas findado. Ontem, sem querer, tirei a cama do sítio, empurrei o malote que se encontrava nos pés da cama, empurrei-me a mim ao limite do desespero. Ontem. Estava sozinha. Não havia ninguém a quem esperar para o almoço, não havia ninguém a quem dizer, desculpa, já vou, ou as sobras do almoço estão no frigorífico ou ainda bem que vieste; hoje vou, finalmente, aceitar que partiste. Hoje vou e talvez eu despenque e volte a estruturar-me. E talvez quando nos fustigamos, quando rasgamos um temporal, possamos, finalmente, depois, ver chegar a paz que merecemos. E encontrei-te, debaixo do armário onde guardavas os teus discos, onde guardavas os teus licores e as cigarrilhas creme, um dos teus diários. Deixei os móveis, aflita por ouvir-te nos teus registos íntimos, e sentei-me no cadeirão velho junto à janela, onde tantas vezes te tinha visto a figura, com a cabeça nas mãos, movendo-te ao ritmo das dores e da música dos teus compositores favoritos. E descobri que os fantasmas tinham nome, endereço, que alguns deles me eram conhecidos, que a vida não era bonita para quem guardava tanto fantasma nos porões. E perguntei-me porque não soube eu identificar essas dores que te afastavam de nós, de mim, dos miúdos. Ontem, eu tinha uma dor com um vazio, assente numa realidade fictícia e hoje já podia dar nome a todas as nuvens, a todos os momentos de silêncio que haviam pulsado dentro de nós. Hoje, eu já sabia compreender a tua solitude e a tua abstinência de pessoas, já podia entender a distância que mantinhas do mundo. Hoje. Ontem. Tempos verbais que se colidiam no agora da minha consciência. Poderia dizer-se que tinha aceitado a tua dor, que tinha respeitado o teu silêncio, que tinha argumentado comigo mesma que cada ser tem os seus momentos, a sua vida particular, sem desgraças concretas, como se fossem apontamentos que se retiram aos sonhos e que permanecem num estado pouco sólido por fazerem parte de várias linhas de tempo. E que a realidade era aquela de entrares no carro, ires dar aulas, encontrar este e aquela, sentar para um café, levantar e prosseguir maquinalmente, dentro do carro, dentro dos pensamentos, mas sempre com um volante entre as mãos e depois, entrar em casa e ficar com a cabeça entre as mãos, baloiçando os acordes entre os dedos e a mente, entre os sentidos ocultos e pessoais. Ontem, as tuas dores não tinham nome e, por vezes, chegaram a possuir um brilho angelical, porque há anjos entre nós que bailam e nos pegam ao colo, com sorrisos e lágrimas, que se congratulam com os nossos sucessos, mesmo que pequenos, que pequenos são todos os sucessos do dia a dia, face às dores que hoje, só hoje posso perceber que te habitavam. 

Afinal, um homem aparentemente equilibrado, aparentemente normal, aparentemente vivendo o dia a dia, pode ter morrido, afinal, há muito tempo. E tu morreste há tanto tempo. E hoje que te percebo, estás vivo, comigo, aqui, no teu quarto, vendo-me invadir os teus cadernos de apontamentos. Ontem eu não o sabia, nem poderia identificar tal realidade associada a ti. Hoje, a minha pretensão de conhecimento ficou ali, entre a cama fora do seu sítio habitual, o malote, o armário dos vinis, hoje até a minha mente sofreu do vendaval provocado. Os cortinados ondulam e eu sei que, eventualmente terei que sair do torpor, terei que ir comer, alimentar as galinhas, o gato, eventualmente, o carteiro chegará na bicicleta e tocará, como se hoje fosse um dia normal, mais um dia a somar-se a todos os outros, que o luto nos obriga a simplificar as coisas, mesmo que elas não desçam da glote, estacionem anos na glote, que as coisas precisam de espaço e disposição anímica para regressarem, tal como eu, aos sítios costumeiros, aos dias costumeiros, aos pensamentos costumeiros da mesmice de todos os lutos. Ontem, ainda ontem, nos ontens que intermediam estes meses, ainda ontem estavas cá. Ainda ontem te pude afagar os fios raros de cabelo, ainda ontem te podia olhar e retorquir da tua ausência aparente, ainda ontem podia trazer-te o queijo em finas fatias com pão e o teu copo de leite, ainda ontem te sentia acordado e hoje, que te compreendo, que sei dar nome e solução tardia aos teus dilemas, tu não estás aqui. E eu penso que talvez hoje, agora, talvez precisamente agora, estejas mais presente do que em todos os dias em que te pude vir ver. Em que procurei te abraçar e pela tua relutância, ia adiando o momento de o fazer. Sem imaginar que ontem poderia ter feito diferença se, ao menos, tivesse entrado no teu quarto, enquanto saías para dar as tuas aulas e te tivesse roubado a privacidade da tua dor e tivesse sacudido todos os fantasmas que guardavas aqui, no armário dos vinis e dos licores e das cigarrilhas. Acendi uma cigarrilha para comemorar a minha estupidez, a minha ignorância em te olhar e te perceber na retrospetiva de ontem. Na lupa de hoje. Hoje que estou aqui, sinto que também tu vieste de longe, que te sentaste na borda da cama, de frente para o cadeirão onde eu estou agora. Ontem, julgara-nos perdidos, não sabia de ti, mesmo contigo aqui fisicamente, ontem nem de mim sabia, porque as horas arrastavam-se sucessivamente e eu nomeava o tempo que era de deus, como se nomeiam os dias da semana e era lá que eu andava, na mesmice das rotinas. Ontem eu estava perdida em ti e não sabia. Mas hoje, repara, hoje que não estás aqui, o teu corpo não é presente, também o meu se ausentou, quando peguei nos teus registos e ganhei a coragem de te ler. E se ontem eu me havia perdido e te sentia perdido, hoje encontrei-me e perdoei-te. Não sei se algum dia o vou poder fazer comigo. Perdoar-me de não ter violado a tua privacidade antes. Enquanto te podia resgatar, ou dizer-te deixa-te ajudar. Deixa que te abrace ou então, abraça-me tu, que a tua dor é minha também. De não ter partilhado as tuas dores avulsas, dores que sem nome, povoavam os nossos momentos. Percebo que hoje é um dia importante, que é o dia em que provoquei um vendaval nos teus aposentos e que venho recuperar alguma paz, alguma tranquilidade que, desde que te foste, não acreditava poder ter. Sim, empurramos os dias junto com as tarefas, junto com as compras, com as cartas, os livros e as refeições casuais. 

Levei dezassete anos sem perceber que, quando te perdi, era de mim que não sabia. Que queimava o tempo a dirigir-te impropérios em solilóquios, por não saber traduzir o teu pesar, a tua ausência, a culpa que te atribuía de não te compartilhares comigo. Os miúdos também se ressentiram, mas, penso agora, que talvez te tenham entendido mais e melhor que eu. Foram vários anos em que perdi a conta das vezes em que, para poder virar costas, dentro de mim nasciam as perguntas e cresciam os azedumes contra ti. Porque não me dizias que a tua dor nada tinha que ver comigo, que a tua dor tinha outros nomes que eu desconhecia. E houve um tempo, não foi ontem e nem hoje, nem antes de partires, mas nesse tempo em que ainda sorrias, que ainda compartilhavas refeições comigo, que ainda te obrigavas à normalidade da vida a acontecer, nesse passado distante, vociferei nas paredes do quarto, da sala, da cozinha, no galinheiro, debaixo do velho carvalho, onde somava as tuas culpas, a fim de dissipar as minhas dúvidas, eu que não sabia perceber-te e que nunca me ocorreu invadir a tua privacidade, talvez porque não suportasse se o fizesses comigo, ou talvez porque desconhecesse que a tua privacidade me poderia trazer respostas. Terminar com os imensos e cansativos monólogos em que me gastava, para entender a distância que impuseste, a que nos empurraste. Perdoa-me. Hoje, bem sei que é tarde, já tão tarde, que os legumes queimaram na horta, que o gato adormeceu para sempre, que o feijão queimou no fogão, que a sopa estragou no frigorífico, que as cartas se somam sem remetente que as responda, bem sei que é já tão tarde, que o dia em que te conheci, foi o dia em que não me pude perdoar. Perdoa-me e ajuda-me a deslaçar todos estes ais guardados. Como se faz, diz-me, como se arruma a casa, depois de um vendaval? Como se dispõem as coisas sob as prateleiras, por ordem alfabética, por temática, por intensidade, diz-me. Como se continua vivo, depois de se morrer? 

Hoje, ainda hoje, e já passaram tantos hojes, convertidos em passado, ainda hoje, dizia-te, as açucenas me sorriram de fora da janela, ainda hoje olhei o espelho e fugi. Ainda hoje, releio tudo e há sempre um travessão, uma palavra que se fugiu, como eu fujo a encarar-me, há sempre mais que os teus textos me dizem e que já tão tarde, os tenho vindo a decifrar. Diz-me que me perdoas, diz-me, mesmo que em sonhos, que te não pude compreender, diz-me que tudo se remediará, chama-me menina outra vez, chama-me pelo nome para que eu desperte, para que eu encontre a linha de prumo, para que eu te vá visitar e te levar açucenas, que estão tão bonitas, para que eu resolva voltar a viver. Vem dizer-me que me perdoas, por favor. Não por te ter lido, esse perdão não necessito. É do outro, de quando te via com a cabeça entre as mãos, baloiçando os ais, sem que eu os ouvisse verdadeiramente, de quando a música subia pelas paredes e eu tinha ciúmes da música, tinha raiva do que ela te podia dar e eu não. 

Os meninos se fizeram homens. Arrumaram as vidas e voltam para nos visitar, saem com uma preocupação no olhar e que, de alguma forma, tento atenuar, dizendo-lhes que tu estás comigo, que não estou só, que a vida sucede, e que mesmo que haja respostas, temos o direito de as vivermos como melhor nos aprouver. Creio que me consideram louca. Talvez seja loucura o isolamento. Talvez. Mas encontro no silêncio o que me faltou durante a nossa vida. O entendimento de que, à semelhança do amor, as coisas infinitas, as coisas não reveladas, não ditas, guardadas, são aquelas que se mantêm fiéis a nós, que ficam connosco até ao derradeiro fim, até que venha alguém, depois de nós, provocar vendavais, irromper a suposta calma que jaz nos aposentos e encontrar vestígios de entendimento, encontrar porões que guardamos e que nos dão identidade, privacidade, que trazem luz à compreensão das nossas escolhas. Desfazer os limites e os mitos de quem fomos e encontrar, quiçá, o desconhecido de nós que se não revela, que não pede guarida e nem abrigo, que se aceita como sendo a fronteira entre os outros e nós, que privatizamos a vida inteira, até que se rompam os caudais da solidão e se tenha de tornar visível esta humana condição. 

Decidi chamar o testamentário. Retificar áreas e, ainda com algum discernimento, regular o futuro dos miúdos, sim porque eles continuarão. Deixei lá escrito que os teus e os meus diários devem ser lidos em espaços próprios, como os teus aposentos que agora, só hoje, tornei meus. Lembrei-lhes nessa carta ainda fechada que quero que me vistam aquele vestido amarelo, com gerânios impressos, o que me ofereceste pelo dia dos meus anos. Foi nesse mesmo dia que me pareceu que te irias revelar. Nesse mesmo dia, em que, sem contarmos, nos deram a notícia do acidente. Nesse mesmo dia, em que voltamos suados de dançar e não pudemos falar mais nada. Foi, também, nesse dia, que decidiste mudar de residência e vieste habitar a casa mãe, sozinho. 

Hoje, lacrei o testamento. Hoje, senti-me ungida. E inspirada para te dizer, ainda hoje que me perdoei. Que nos perdoei e que sinto o teu perdão. Hoje, o meu caderno escreve-se, ao lado do teu que permanece como base da tese da minha vida, do que me resta, do que se finda em nós, quando eu me findar. 

Hoje, o carteiro chegará e tocará duas, três, quatro vezes, até entender que o silêncio tomou conta de tudo. Irá embora, e regressará amanhã e dará conta que ninguém foi abrir a caixa, que ninguém se movimentou pela casa, que o abandono fala mais que eu. Hoje, talvez no final do dia, me possam conceder a alforria de finalmente, voar, largar a carcaça velha e voar. Hoje fumarei a última cigarrilha creme. Hoje colocarei Haydn, hoje ligarei a lareira, mesmo que o verão me diga que está calor, porque hoje faz tanto frio dentro de mim. 

Hoje, tenho em mim que viver só pode ser leve e prazeroso, quando deixamos de guardar os sentimentos nas prateleiras ou dentro de caixas, ou atrás de armários, que o peso das coisas torna a vida difícil e que a autenticidade se nos some para um porão, e vai habitar os nossos medos. E o oculto necessita de espaço para se revelar, sem julgamentos nem culpas, nem medos e nem trivialidades. Só hoje me dei conta que a minha identidade precisa morrer, e para isso, preciso contar com alguém que venha depois de mim, depois de ti, subir aos aposentos e violar todas as caixas que guardamos, escusando-nos assim, à vida. Tal como ela é. 

Haydn adivinha-me os pensamentos e dirige-me a ti. Finalmente, estarei contigo e já me poderás mostrar o porão das tuas dores e me perdoares por eu não ter sabido procurar-te, quando ainda havia um sopro de vida dentro de ti. Hoje, só hoje. 

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