Vi o Seconds Out

 




...com a Jennifer López. O bolo está no forno, depois da eletricidade ter falhado imensas vezes, hoje também, ontem também, anteontem também. Desta vez, fiz o chiffon com iogurte natural, adicionado a todo aquele soberbo sumo de laranja. Ao invés da farinha normal, usei a de aveia. Juntei a pequena colher de café com fermento. Açúcar mascavado. Menos do que a receita pede e acrescentei mais um ovo. Lembrei-me dos Genesis. Quando iniciou o filme. E de quando comprei este álbum dos Genesis. E eu sempre preferi ouvir os Genesis com o Peter Gabriel na voz. Ainda vivíamos perto da igreja de Cedofeita, na rua Álvares Cabral, naquele recuado, que em dias limpos, dava para ver o mar. Tomei um duche rápido, na altura estivemos uma semana com a máquina de lavar avariada. Lembro-me que vesti uma saia cinza de flanela que me tinhas oferecido, com o corpo justo, cingida na anca, por um largo elástico preto. Uma blusa preta fininha e um casaco também preto e escolhido por ti, justo e cheio de acolchetes. 

Depois de secar o cabelo com a toalha, deixei os cabelos cair nos ombros, todo encaracolado e saí com ele ainda molhado. Desci o resto da rua e entrei na rua de Cedofeita, ali junto à polícia, atravessei e entrei no velho shopping, onde o Cardoso tinha o seu boteco. O azul e branco. Só ia para tomar um café, mas entrei na carcaça do shopping de Cedofeita. Onde havia uma loja de discos e vinis. A loja de discos ficava no centro do átrio e de todas as outras lojas, no círculo da circunferência e podíamos dar a volta à loja e ver todos os álbuns novos. Vi o disco Seconds out, pela primeira vez lá, não foi na Tubitec. E foi mesmo ali que o comprei. Não te disse nada. Só depois. Alguém nos tinha convidado para ir a um qualquer espetáculo. Se queríamos ir. Eu disse que sim, que te diria. Mas depois disseram-me que era no Ateneu. Perdi a vontade. Não to disse. Ao invés disso, mostrei-te o disco. Ouvimos o álbum, e não me recordo se foi na rua do Almada ou se foi no atelier que gravaste para uma cassete, de modo a podermos ouvir no carro, quando fazíamos as nossas viagens. 

Nessa altura, sei agora, depois de reconstruir os dias, com todo o tempo que me sobra, que a fulana que frequentava a nossa casa era minha inimiga. Por isso, todos me perguntavam como eu a aturava, porque diziam que ela era execravelmente egoísta. E veio a entrar na família e talvez tenha sido aí que passou a odiar-me secretamente. Não podia imaginar tal. Na altura, não o sabia. Odeia-me, vê só, anos dedicados a tentar curar-lhe aquelas feridas todas. E ela aqui há dois meses atrás disse-me ao telefone que me odiava, não disse com as palavras todas, porque não se pode esperar que alguém que guarda tamanho rancor, raiva, inveja, ciúmes, receio, rejeição, durante mais de trinta anos, tenha a coragem e tenha guardado tudo bem guardado, e me tenha dito tudo o que pensava e não pensava em apenas quinze minutos, há meses atrás via chamada telefónica. Nunca me foi capaz de dizer antes e conseguiu ser dissimulada, tanto tempo da vida dela. Como estava a dizer, nessa altura, em que a fulana me aparecia todos os dias lá em casa, para chorar, para me saturar com as suas queixas, para me levar à loucura através das suas dores, a minha mãe fez-me uma visita e até ficou surpreendida por encontrá-la lá. Uma vez que o meu irmão, que era o seu interesse maior, não me visitava. A minha mãe chegou com a Vilma. Carregada de compras. Tinha ido ao supermercado perto da nossa casa, isto é, na Praça da República. Ainda tinham carregado bastante. Chegaram afogueadas. Lembro-me de ter olhado com bastante surpresa para as duas. A minha mãe nunca soube pedir desculpa, nem dizer fazes-me falta, ou não queria que tivesse sido assim, ou outra coisa qualquer que se lembrasse, para justificar a ida a nossa casa. Nem me lembro de lhe ter dito onde morávamos, porque nunca mais estive com ela. O nosso apartamento era uma kitchenette, open kitchen ou pequena, disse ela, era verdade, mas para nós chegava. Lembro-me de tê-la visto desapontada e ter falado entre dentes com a Vilma que não esperava que o frigorífico estivesse tão cheio. Naquela altura, pensei que ela preferia saber que nós tivéssemos necessidade dos sacos de compras dela, para poder ficar mais satisfeita. O que é certo é que nada do que trouxe nos teve serventia ou cabia no frigorífico. Nunca faltou nada. Lembro-me de lhe ter perguntado pelo meu irmão. Disse-me que continuava a vê-lo pouco, pois estava no Chaplin durante o dia e à noite ia para as aulas. E quando ela não trabalhava, sentia falta dos filhos. Sentia-se sozinha. Li-o na altura, entendi, digeri. Não queria estar sozinha. Não lhe podia fazer nada. A minha vida tinha mudado e ela tinha a sua própria vida, a que escolheu. Perguntou-me porque tinha uma bacia em cima da máquina no wc, de roupa com detergente, se tinha máquina para lavá-la. Disse-lhe, entre dentes que a máquina tinha avariado e que ainda aguardávamos que lá fosse o reparador de máquinas de lavar. Porque era o tambor que estava estragado. Vi o sorriso dela, porque me imaginou a lavar a roupa à mão e, sempre me podia ser útil. Afinal, a filha precisava dela. Disse-lhe que não precisava de outra máquina e sim de reparar aquela. Queria dar-me dinheiro. Disse-lhe que não. Que o homem lá iria reparar, assim que pudesse. Não lhe estava a mentir. No dia seguinte, voltou lá com a Vilma. Levando uma máquina de lavar manual, para garantir que eu não estaria a esfregar a roupa à mão. Não tive como lhe dizer que não. Agradeci e disse-lhe que não precisava se ter dado ao trabalho. A frieza foi o que sobrou da nossa relação mãe-filha até à minha adolescência. Depois da atitude que tomou comigo, depois de tudo o que me disse, sobre mim, sobre ti, sobre nós, não poderia acreditar que eu continuasse a falar-lhe como sempre tinha feito, tentando agradar-lhe, não depois de tudo o que fez. Não ficamos muito tempo a viver ali, mudamos para a rua Eduardo Santos Silva no ano seguinte. Perto de Costa Cabral. Ela ficou deveras contente. Porque podia passar por lá. Para dizer olá, ao invés de ir para casa, ligar a televisão, deitar-se, voltar a levantar-se e desligar a televisão, com receio que os mortos se erguessem para lhe pedir contas de nós. Pobre mãe, nunca soube lidar com os vivos, a não ser de uma forma superficial. 

Não me lembro se foi um ano depois de estarmos a morar em Eduardo Santos Silva que descobri a minha gravidez. Creio que já estávamos há mais tempo por lá. A gravidez não foi uma surpresa para mim. Nessa altura, ela passou a evitar estar connosco. Nessa altura, ela decidiu casar, mesmo sabendo de tudo sobre ele e que não abonava a seu favor. Teimou. Casou. Pouco depois pediu-nos auxílio. Ligou a chorar. Fiquei aflita. Resolvemos estar presentes. Implorou, depois do nosso filho nascer, que fôssemos viver com ela. Por mim, nunca o teríamos feito. Mas havia a minha questão interna do espírito de missão. E tu disseste: porque não? 

E deveria ter sido não. Porque só há cinco anos atrás me confessou, pelo Natal, que tinha odiado ser avó, que detestou ver-me grávida, que não suportava a minha alegria, que nunca quis ser avó. E disse-mo com as letras todas e com testemunhas. E que no segundo neto, ainda me detestou mais. E ao neto. Incoerências que disse pela boca fora. Soltou o verbo. Eu fiquei acuada. Estávamos aqui, na minha casa, onde ela tem passado anos da vida dela. Não sei como tomaram os outros aquilo que ela disse levianamente, não sei, porque me ficou uma dor insuportável a crescer internamente, e eu não sabia se era minha ou se era a dela também, e não falamos mais sobre isso, e eu digo levianamente, porque sei que ela adora os netos. Mas disse-o. Foi um choque para mim. E tenho andado a digerir e a tentar entender o que faz uma mulher que perdeu um filho e um marido dizer estes absurdos. E compreendo as limitações dela, dizer odiei é como se dissesse não concordei, não gostei que ficasses grávida, mas podia tê-lo feito de uma outra maneira, em privado, podia ter-me dito filha, a família do teu pai criticava-me tanto que eu não suportava que eles dissessem, vês, eis o resultado da permissividade da mãe, que deixa os filhos com uma empregada quase da idade deles, que permite tantas coisas, que é tão moderna, podia ter dito, não disse mas eu percebi-a. E tenho protelado tudo, percebido tudo, como se dissesse e quisesse que eu fosse a continuação dela, com a frieza dela, com a racionalidade dela, com os seus preconceitos escondidos, guardados, como se fosse vergonha dizer: olha lá, rapariga, não achas que devias adiar a vontade de ser mãe? Não achas que a família do teu pai, blá blá blá e eu teria dito duas ou três coisas, teria dito que não era da conta dela, teria dito que eu vim realizar a minha vida e os meus sonhos e não ser uma cópia dela, que me estava nas tintas para o que pensavam de mim, que só me importava o que a avó Bina e o avô Rodrigo tinham a dizer-me e disseram-me sempre, de uma forma amorosa que me amavam e me estimavam, com certeza, lhe teria dito que estava cansada de protegê-la, de tapar os ouvidos, de ouvir absurdos,  mas ela não se cansava e voltava a repetir. "Tu vais ser muito infeliz. Nunca vais ter sorte. Vai te acontecer o mesmo que a mim." E palavras de mãe encontram sempre forma de armadilhar o futuro dos filhos, de o suspender, de o estremecer. As mães deviam vir com manual. Nenhuma traz. E temos que andar a adivinhar o que lhes passa pela veneta quando dizem odiei ser avó, odiei ser avó dos teus filhos, odiei-te quando estavas grávida, odiei-te quando tiveste os teus filhos e antes de os teres, e até muito antes, quando o teu pai partiu e me deixou só com vocês os três para criar. Odiei ser mãe, odiei perder outros filhos, odiei ter nascido e ter perdido ambos, pai e mãe para a morte, odiei ter tantos irmãos e nenhum ter querido saber de mim, odiei tudo, até odiei o teu pai, quando lhe disse que estava grávida e ele me disse que me enganou, que era mais novo que eu um ano. E mandei-o embora. E se ele não tivesse voltado, tu também terias ido embora. De outra forma. E sim, eu era independente. Estava preparada para fazer tudo o que fosse necessário para me garantir a mim, mas não queria família nenhuma, nem a família do teu pai e nem a minha própria família. Fazia-me tanta confusão uma família tão grande e tão unida, tantos irmãos a darem-se bem e os meus nem sabiam que eu existia. Depois ele partiu. Depois, arranjei empregadas que fizessem um melhor trabalho que eu. Depois habituei-me. Sabia que tinha três crianças em casa. Que me esperavam. E que me arreliavam, de tal forma tinham vontade de estar comigo. E eu que só queria estar a trabalhar, ocupada, não pensar que os mortos podiam dormir ao meu lado, não queria pensar em nada. Só queria saber porque a morte esteve tão próxima de mim e porque fui escolhida para estar sozinha, sempre. Até tu namoraste e foste viver com alguém. Porque haverias de ser feliz? Eu não era. Não queria que fosses. Assim, escolhi a ausência de sentimentos, as conversas banais, a carreira, o trabalho, as doentes, as novelas e os debates políticos, a presunção de ter vivido sem deus, mas ter ficado à sua mercê, deixando-o escolher por mim o que tenho vivido. Só pode ter sido o destino. A solidão e o medo. 

O monólogo das mães que se não permitem ser autênticas, reais, integralmente. E quem diz mães, diz pessoas, porque as mães são pessoas, são mulheres, são filhas, sobrinhas, primas e tias, e namoradas e vizinhas e amigas nunca são só uma coisa ou outra. Que o destino, não lho disse na altura, mas é feito das nossas escolhas. Erradas e certas, pensadas e impensadas, até quando não escolhemos, estamos a deixar o tal do destino fabricar uma realidade que não queremos, que não nos dá jeito, porque nos recusamos a sentir, como se pudéssemos ter o destino das pedras! Que quando somos negativos e pessimistas, até o ar contagiamos, parimos as nossas tristezas e até as dos outros, de alguma forma. 

Tentei sempre não me deixar contagiar. Sempre sorri à vida, a vida que há dentro dos outros e à minha. Sempre encontrei nos maus momentos, qualquer coisa boa, por mais pequena que fosse, mas que se pudesse aproveitar, como as tempestades que são as dores das mães que não falam e se contêm e depois irrompem em raios e chuva e rompantes e insinuações, para dizer não aguento mais, não suporto esta dor e nem esta, nem suporto quem catalogue todas as dores! Tentei e continuo a tentar perceber o que vai dentro, ruminado entre o corpo e alma dos outros, e de alguma forma, sei que ajudei muitos nessa perceção, nas desconstruções e nas fases seguintes. E quando o estrondo acontece, a terra estremece, clarões de luz são vistos, aqui e ali, que a luz contagia todas as escuridões e o alívio é imediato. A descarga acontece dessa forma, dentro das pessoas. A minha avó materna morreu assim. Por causa de uma trovoada. Refugiou-se num dia de tempestade debaixo de um castanheiro. E ficou com os órgãos todos queimados. Sobreviveu mais algum tempo. Sim, a minha avó materna era forte. Aguentou uma descarga. A descarga emocional das mães também é assim, irrompe da mesma forma, e mesmo que os que estão próximos não sejam os culpados da tempestade, devem segurar a tempestade, ser para-raios das mães, eles devem segurar as pontas, ter velas e lanternas apontadas para as mães meninas, que continuam a temer o escuro, a solidão e tudo o que mexe por dentro. Deveria haver absolvição de dores para mães assim. Para que não construíssem pedreiras no coração. Para que construíssem jardins e estufas, ou lagos e casas nas árvores. Às mães deveria ser outorgado não perderem as bússolas, não serem demasiado humanas, demasiado frágeis, demasiado meninas ainda. Tentei, nos intervalos em que estive com ela, dizer-lhe que a solidão não existe. Não estamos sozinhos nunca e de maneira nenhuma. Que a solidão que sente não existe. Tal como o ódio. Que é um produto criado pela sua mente que a engana. A solitude é fantástica, porque nos permite usufruir de quem somos, conhecermo-nos internamente e até os outros. Que o medo é outra ilusão criada para que fique presa e limitada. Que a morte não existe e isso já lho disse, muitas vezes. Não acredita em mim, acredita no Léo, acredita no Papa e no anticristo, mas prefere não falar de deus. Pede-me que a ensine a meditar, e faz tábua rasa de tudo o que já lhe repeti infindáveis vezes. Que acredita em tudo o que é do outro mundo, e em todas as coisas negativas deste, mas na alma tende a não acreditar. Fecho a porta aos pensamentos, aos monólogos de mãe, à distância que se mantém entre o meu coração e o dela. E pé ante pé, volto ao agora, depois de ter espetado o palito no bolo para comprovar que está pronto, que o odor é doce. Que a trovoada continua. Eu não estou tempestiva. Sinto-me calma. 

O bar ficou para amanhã, ao fim do dia. Talvez amanhã também não me apeteça sair. Mudei o menu do assado de domingo para picanha, farofa, couve mineira, feijão preto e logo verei, se sirvo o bolo, ou se o guardo para o lanche e sirvo de sobremesa uns morangos com uma bola de gelado de morango. Que a Eva gosta mais de gelado. Dizem que chove, a partir de segunda. Eu digo que chova. E que lave a alma dos humanos. Que lave. E a todos os que não temem andar debaixo dos seus pingos. Peguei na tua foto para te dizer boa noite e lembrei-me do Phill Collins. Tudo me lembra de ti e tu estás congelado num qualquer decreto, num tem-de-ser-antes-que-eu-morra! E tu és vida, que me deste corda, que me ensinaste a viver a paixão, e a música continua a ser a minha maior paixão. E se continuo, derreto o decreto e lá se vai o voto de congelamento que fiz. Shalom.  


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