A vida era isto e aquilo

 




Ainda era menino, muito menino, a última vez em que os sorrisos e a alegria se faziam descanso no meu corpo, no meu quarto, entre as paredes que foram, afinal, a falsa promessa de segurança. A infância é a mais doce etapa da vida de um homem, quando a inconsciência anda de mãos dadas com a brincadeira. Depois foi tudo tão rápido, de proporções dantescas, cujo controle que não me cabia a mim, que era pequeno para poder estancar o perigo, escapou-se das mãos dos adultos e veio cair justo aos nossos pés. As minhas irmãs eram pequeninas. Eu era o mais velho. A notícia da morte da mãe correu rápido e deixou-nos a todos perplexos. A cirurgia correra mal, que ouvi dizer terem feito todo o humanamente possível, mas nunca sabemos se há um auge para esse todo, quando somos crianças, porque para a tenra idade entre os dois anos e os dez, a vida devia ser uma carpete fofa e lisa, quente e aconchegante, onde podemos espalhar os nossos brinquedos, junto com outras crianças iguais a nós e deveria haver sempre uma voz adulta a fazer o lanche, a chamar para o almoço, a repreender pelo excesso de sujidade, enfim, a dar-nos conta que a vida precisa ser contida, de alguma maneira e que as regras servem para nos instruir, tal como os hábitos nos auxiliam a aprender comportamentos saudáveis, a evitar deslises e negligência. Com trinta e quatro anos, o pai ficara na condição de viúvo, perdera a mãe com vinte e nove, e ficara encarregue de educar três filhos menores. Pai nenhum está preparado para isso. A mãe não era doente e a leucemia tinha chegado sem aviso. E em sete meses, dera cabo dela. E do pai, em simultâneo. Ninguém podia adivinhar este desfecho. Perdemos o pai e a mãe naquele mesmo ano, embora me tenha tentado enganar até aos meus treze anos. A mãe era magra e destemida, mas o pai era aço. Forte que nem um touro e sempre bem-disposto. Ouvi-o dizer ao marido da Teresinha que não estava preparado para aquilo. Que se lhe dissessem que ele morreria, que tinha uma doença e pouco tempo de vida, ainda assim lutaria. Mas que não sabia viver sem a mãe. Que não sabia tratar dos meninos como ela fazia. O pai abandonou-se à autocomiseração, posso avaliar com frieza agora, que já foi fazer companhia à mãe. De comportamentos rígidos de educação, padrões de moralidade coesos, ficou somente aquilo, aquela sombra no sofá, entre almofadas, ursinhos de pelúcia das minhas irmãs e as garrafas vazias que ajudaram a que entorpecesse os sentidos e fosse morrendo aos trambolhões, depois dali. Vi tantas vezes o pai chorar. Não como uma criança que chora por perrice, que manipula os adultos para conseguir as suas pretensões. Não, o pai chorava como um homem grande, sem consolo. Também sou um homem e também choro, mas não me lembro de ter visto um homem que chorasse com tanto desespero como ele, e cujo luto o tenha vencido tão rápido para a escuridão. Seria mentira se dissesse que não me revoltava a sua complacência e apatia. Eu era combativo de espírito, tal como me lembro de ver o pai ser, e se perder a mãe me foi muito doloroso na altura, perder o pai foi um alívio, um ato de misericórdia que veio do céu. Ainda hoje, sinto o suor na palma das mãos e o mesmo suor na testa, me tentar endireitar na parede, e o mesmo suor me pingar pelas costas na camisa e fazer pressão contra a mesma parede, desistindo, tão impotente era a dor dele, quanto a minha revolta. Desferia golpes contra aquelas paredes que deveriam ter acautelado a nossa família, que acobertaram todos os sentimentos, junto com a fome de carinho. Extenuado pela propagação da situação e de não lhe ver, na altura, uma saída airosa. E como a negligência medrou na partida da mãe, houve alguma sensatez no pedido do pai por ajuda com os pequenos. Ele já sabia que não seria capaz de vencer aquele monstro que entrou aquando da morte da mãe, na nossa casa, e que ficou a assistir à derrocada triste da nossa família, como peças de dominó, uma a uma. Com esgares de sarcasmo, atrevo-me a dizer. A Lena, a mais nova, que tinha o nome da mãe e da madrinha da mãe, foi para a tia Aurora, a irmã mais velha da mãe, ainda não tinha completado os dois aninhos. A Margarida ficou connosco até aos seis anos. Depois, o tio Miguel veio com a esposa, falaram com o pai e disseram que a menina cresceria mais bem acompanhada por eles, que não puderam ter filhos e lhe podiam dar um olhar atento e uma educação pertinente. E sei que foi para a escola na cidade e que completou o percurso escolar obrigatório. Nestes anos todos, se estive com as duas, ao mesmo tempo, duas ou três vezes foi muito. Chegaram a ir visitar-nos no Natal durante três anos seguidos, mas depois o pai nem sequer se esforçava para que se sentissem bem, e mal se dava por conta que elas o iam ver. Eu fiquei com o pai, assistindo ao seu processo todo do luto, de perda do emprego, no mesmo ano em que a mãe partiu, de tentativas de novos empregos, do álcool, das mulheres que vieram viver com ele, às vezes circunstancialmente, aos quinze dias, aos três meses, mas creio que nem elas aguentavam aquela dor estancada no peito do pai. Nem sabiam dar-lhe colo. Nem gostavam de mim, que era o filho dela, filho dessa dor que o manteve pouco tempo sóbrio, e este processo estendeu-se para além do entendível. O pai, cinco anos depois, foi internado no hospital, diagnosticado com uma cirrose. Enquanto ele estava no hospital, a Teresinha, nossa vizinha de frente, deu-me assistência com as roupas, algumas refeições, a mudar os lençóis, ensinou-me a fazer algumas refeições mais saudáveis. A minha vida escolar foi péssima. Com onze anos, ainda andava a repetir a quarta classe. Nessa altura, ainda me tentava abstrair das dores e sonhava que o pai, quando chegasse a casa, viria com nova cara e nova disposição, a de lutar, como faria, antes da mãe partir. Que iria conseguir um emprego melhor, que não teria vontade de beber. Que eu também haveria de arranjar um emprego melhor do que aquele que aos treze anos arranjei, perto de casa, numa mercearia, a empilhar caixas de fruta, a pendurar jornais, a acomodar as garrafas de leite no frigorifico e nas prateleiras, a varrer o armazém, a lidar com todo o tipo de reclamações da freguesia, a fazer recados a quem mo pedisse. E foi esse mesmo emprego que me ensinou a lutar e não desistir. E a comer, eu e o pai. Porque o dinheiro que ele ganhava, quando se dispunha a ir trabalhar, era quase todo gasto em vinho. A Margarida escrevia-me cartas e eu guardava o final de sábado, às vezes, o domingo para lhe responder, e dentro das minhas capacidades de escrita, lhe contava algumas coisas, que ela insistia em saber. Nem à minha própria irmã fui capaz de contar todas as coisas que me ficaram entaladas, até escavarem em mim este medo da vida.  Que era um desfiar de desafios a que perdi a conta. Nenhum de nós voltou ao que era antes. Nem eu criança, nem o pai homem. Os semblantes fechados. A tristeza desenhou ali uma parede de hostilidades contra a vida, e de culpas e mágoas que fizeram morada connosco, nesses anos que definiram a minha personalidade, a minha vida, a minha conduta, a minha depressão. Nos primeiros anos, quer o tio Miguel, quer a tia Aurora ainda nos visitavam, mas saíam apressados e aflitos, que não queriam que as minhas irmãs vissem o estado de sítio em que tínhamos mergulhado. Tinham pena de mim, isso lembro-me, mas recusei abandonar o pai. Eu era o mais velho. Cabia-me a mim cuidar dele. A vida era, também isso, o sacrifício. 

Desde o diagnóstico da cirrose até à morte do pai, o ano passado, muita coisa se passou. O pai voltou ao mesmo, não deixou de beber, bebia às refeições entre uma empreitada ou um biscate, voltava para casa, fingindo estar sóbrio, acredito que ainda tentou, para não me desiludir. Houve noites de jogatina, em que alguns amigos do pai chegavam lá a casa, enquanto eu tentava ver televisão ou fazer contas à vida, levavam bebidas e ficavam até de madrugada a conversar e a jogar. O pai nem ia à cama. Dormia no sofá. Primeiro à sexta-feira, depois por todo o fim de semana. Um dos amigos assíduos do pai tentava ser simpático comigo e ia até à cozinha, enquanto eu fazia uma sandes para que o pai comesse, entre as garrafas de vinho, e puxava conversa. O Mário. Era viúvo como o pai. E carteiro. Que não sabia como eu me aguentava. Tão jovem e tão homem. Confessei-lhe que nem eu sabia como o fazia. Que devia ser a minha mãe lá em cima a manter-me a cabeça entre os ombros e a vida a meter-me a obrigação entre as mãos. Cuidar do pai que era alcoólico. Fraco. Consegui ficar empregado num restaurante onde fazia de tudo, cozinhava, limpava a cozinha e até servia as mesas quando tinha de ser. Trabalhava a semana toda até às quatro da tarde e ao fim de semana, ficava até as dez da noite e folgava no fim de semana seguinte. Não combatia nada, a vida era aquilo. 

Num desses fins de semana, disse ao pai que ia sair. Acredito que tenha pensado que o ia abandonar.  Tinha ido ajudar num batizado, umas horas extra no meu fim de semana de folga e chegara por volta das oito com os pés a doer e muito cansado. Daqueles dias em que, mesmo cansado, queria tudo, menos voltar para casa. Mas lá fui, em piloto automático. Pouco depois chegou o pai e perguntou-me se havia algo para lanchar. Foi quando me decidi ir ao cinema. Disse-lhe que tinha trazido puré e carne e que se servisse, que não tinha fome. Que ia sair. Fui tirar os ténis e enfiar nos pés uns sapatos. Sentou-se na beira da minha cama, enquanto eu me calçava e começou a chorar. Que era um falhado. Que não se lembrava de ver as minhas irmãs. Que o perdoasse, que isto e aquilo. Estava visivelmente embriagado. Disse-lhe que não era de aço. Disse-lhe que não era caso de pedir desculpa. Que eu precisava de sair, ir ao cinema ou assim. Não suportava aquela vida do trabalho para casa e a rotina do álcool tinha-me cansado. Sabia-me tudo a amargura. Lembro-me que me perguntou se ainda me lembrava da mãe. Do rosto dela. Que sonhava com ela todos os dias e que tinha vontade de lhe ir fazer companhia. Perguntei-lhe se os amigos iriam, disse-me que em princípio iriam. Deixei-o sentado ali, na beira da cama e saí. Já era Novembro, as folhas das árvores na praça faziam tapetes no chão e o céu estava limpo. Tomei um café e decidi ir à primeira sessão de cinema da noite. O filme era de coboiada e depressa me cansou. Saí a meio da segunda parte e senti frio. Passei no restaurante onde trabalho e vi dois clientes na porta que me cumprimentaram e me perguntaram se não tinha namorada. Nunca me tinham visto com ninguém. Não estava com vontade de conversa, mas fui educado e segui rumo à praça. Faziam-me confusão as pessoas, as conversas, a alegria. Sentia-me desapontado com tudo e todos. As minhas obrigações morais e físicas, o trabalho e cuidar do pai mantinham-me vivo, mas, efetivamente, estava cansado da sobrevida que levava, entre os sacrifícios e os ofícios. A Margarida tinha telefonado durante a semana para o restaurante e contara-me que tinha começado a trabalhar em part time numa lavandaria, que era um extra, para poder comprar coisas de miúdas. Que os tios eram muito generosos com ela, mas queriam-na ocupada, diziam que pensava menos nas tristezas da vida. A Leninha andava na secundária e fazia desporto. Piscina e basquetebol. As vidas ocupavam-se disto e daquilo e não havia pausas. Voltei para casa. O pai estava na mesa da sala, com o Artur e o Resende, no meio de algumas garrafas de cerveja e vinho, e olhou-me de soslaio e perguntou-me se tinha comido alguma coisa.  Disse-lhe que não. Que mais tarde faria uma sandes. O Mário estava no sofá, semblante de preocupação que não conseguia disfarçar. E dizia brejeiramente, como se não levasse nada a sério, que estava farto da maratona de sueca. Entrei no quarto de banho, tirei a camisa e descalcei-me. Peguei no pijama e fui para o meu quarto. Ainda estava a poisar a roupa na cadeira e o pijama sobre a roupa, quando vi o Mário na janela. Sentado na arca da mãe, olhando o exterior. Ao ver-me, pediu-me desculpa por ter entrado e se podia conversar comigo. Assenti. Virei-lhe as costas enquanto me despia e vestia o pijama. Ele começou por dizer que naquela noite tinham todos bebido demais. Que o pai lhe tinha confessado que andava a preparar a forma de se despedir. Que sabia ser um peso para mim e que eu não merecia. Que me tinha esforçado até ali para o manter sóbrio e trabalhar para pagar contas, mas que sentia que eu estava a desistir. E há muito que o pai queria desistir. Eu não disse uma palavra. Estendi-me na cama, enquanto o Mário olhava pela janela e me ia contando todo o teor das poucas horas da minha ausência. Quando percebi que ele aguardava que eu dissesse algo, respondi-lhe. Que concordava que o pai era um peso na minha vida. Que já tinha pensado em ingressar na tropa. Que por certo, mesmo que não ganhasse o que ganhava no restaurante, me pouparia mais, não tendo que tomar conta daquele adulto tão fraco e das despesas da casa. Disse ao Mário tudo o que pensava do pai. Acrescentei que se ele queria desistir, que o fizesse, mas que não me pusesse doente, a não conseguir trabalhar direito e a ter que equacionar me ir embora sem rumo. E fui para a cozinha fazer uma sandes e tomar um copo de leite. Quando voltei ao quarto, o Mário estava na sala, junto à mesa da jogatina, fumando um cigarro e falando com o Resende. O pai ressonava no sofá. Ouvi-os a dizerem boa noite e saírem. Fui ter com o pai ao sofá e retirei-lhe os sapatos. Ele acordou e cambaleante com o sono, agradeceu-me e foi para o quarto. No dia seguinte, não se lembraria de nada, iria fingir espanto quando contasse as garrafas empilhadas no canto da cozinha e repetiria a façanha. 

E assim foi, até eu ir e vir da tropa. Aí, quando voltei, ainda na incerteza de decisão que tomei, encontrei-o outro homem. Claro, nunca voltou a ser o homem que era, enquanto marido da Madalena. Esse morreu com ela. Deixara de beber. Não bebia leite, mas bebia chás frios e muita água. Emagreceu uns três quilos, o emprego que tinha quando fui para a tropa era o mesmo. Andava limpo e cuidado, apesar do semblante se manter circunspecto. Perguntei-lhe nesse mesmo dia, ao cair da tarde, a que se devia a sua mudança. Ele respondeu-me que eu tinha lutado tanto por ele e que não queria partir, sem ele próprio tentar fazer o mesmo por mim. Que tinha telefonado ao tio Miguel e que a Margarida já namoriscava alguém, vê lá tu, a gaiata já namora, qualquer dia sou avô e nem dei por conta! E tu tio, já pensaste bem nisso? Que tinha ligado à Aurora e que ela lhe tinha dito que a Lena estava em França, com uns primos do marido. Diz-me que planos tens tu, Zé, para a vida? E eu não soube conversar com este homem novo, que só me ausentei por um ano e encontrei alguém diferente, que lutara para manter-se à tona, que teve de pagar contas e trabalhar certinho, que, prescindiu dos fins de semana de bebida e se agarrou com força a um objetivo, que dizia ser eu. E foi assim que entrou na minha vida e na do pai a Maria. Que era a razão de toda aquela mudança. Era mais nova que o pai vinte e dois anos, e doze anos mais velha que eu. Ela estava no auge dos seus trinta e cinco anos, eu com quase vinte e três e o pai com cinquenta e seis anos. Acredito que ela já vivesse com o pai uns meses antes de eu chegar, mas para todos os efeitos, a Maria só se mudou para lá uma semana depois de eu ter regressado do serviço militar. Eu tinha vivido uma vida inteira a lutar por um pai e durante todos esses anos senti que nem uma folha buliu na sua maturidade, na sua vontade de lutar e até falava em suicídio ao Mário. E num ano somente, o pai era um homem muito diferente. Não havia álcool em casa. A primeira vez que a vi, senti que estávamos ambos destinados a viver aquilo. E eu que tinha tantas dúvidas acerca do propósito de vida, de Deus, do Diabo, de tudo, nasceu-me a esperança ali, naquela cozinha de metro e meio por dois, de ladrilhos verdes-escuros no chão e nas paredes flores de primavera doce. Nunca me tinha dado conta que aquela mesma casa onde vivera a mãe, a Margarida e a Leninha, o pai e eu, podia ser tão bonita. Assim, quando a conheci, depois da mãe partir, vi a Primavera chegar, misturada de outono, de todas as estações que se atravessam nas idades, ganhei uma tal pujança que passei a comer com apetite e a ver o pai, corado e feliz, chegar do trabalho e ajudar nas tarefas domésticas outra vez. Não como foi com a Madalena, dizia ele, e não, porque já não era um touro bem-disposto, apenas a sombra feliz do que outrora havia sido, na sua juventude. Uma mulher na vida de um homem fazia muita diferença, é assim ou não Zé? E não me dava tempo de responder. Qualquer dia, também tu arranjas uma Maria. Corei e vi-me forçado a erguer para a pia da cozinha e renovar o copo de água, perante o olhar de ambos. Nem sabia bem o que se passava dentro de mim, de tanta esperança a transbordar. Sentia-me, também eu um touro, com uma vontade enorme de responder à vida, na mesma velocidade que ela me tinha trazido de novo um objetivo por que lutar. E foi com a Maria que aprendi a reconhecer a dor do pai ao ter visto a mulher sumir-se, mais nova que aquela Maria, pela terra adentro, depois de cair na cama. Numa dessas noites de inverno, em que o frio fazia tinir os dentes, eu tinha vindo mais cedo para casa, depois de ter tentado falar com a Margarida e não me responder. A casa cheirava a quente, deviam ser quase dez horas da noite. O pai tinha o televisor ligado no quarto, espreitei e tentei que me respondesse, mas dormia. Encontrei a Maria no meu quarto. A colocar mais uma manta na minha cama. Trazia o robe cor de palha por cima da camisa de noite escura. O rosto sorridente e o cabelo amarrado. Aproximei-me dela para lhe perguntar do pai e ela abraçou-se a mim. Cheirava a água de rosas. O rosto lavado e fresco. Era uma mulher muito bonita. E a vida trazia surpresas. E eu não estava preparado. Ou estava?

Creio que a destruição arranjou espaço para crescer mais feia e mais desumana. Apaixonei-me pela mulher do meu pai. E fodemos como animais, a virgindade que eu carregava comigo, como se não houvesse eros nenhum em mim, morreu naquele fim de noite. E o meu pai, depois de tudo, era um verbo de encher, para mim e para ela. Durante algum tempo, assim foi, fazíamos amor às escondidas, como experimentando a palavra proibido, e eu desisti de tentar entender os acidentes repentinos, os golpes e as razões do altíssimo, e de tentar adivinhar o que o futuro tem para me ofertar. Continuo combativo, porque continuo a obrigar-me a ir trabalhar, a pagar as contas, larguei a medicação, e continuo a tentar falar com as minhas irmãs, pelo menos uma vez na semana ou de quinze em quinze dias, dependendo delas. Mas um pouco menos que antes, que o cansaço vai vencendo, que as dores já se não escondem, a não ser por detrás dos meus maxilares, dentro das minhas mãos e sobretudo no peito. E a todas as questões e ses da Margarida e da Leninha, nunca soube dar resposta, se é que há respostas, nos jogos de faz-de-conta que nos acompanham pela vida fora. E esses abutres acompanham-nos até ao momento mais preenchido, ao mais apaziguador, que nos vigiam sempre, se experimentarmos esse atrevimento que é o de sonhar, nem eu tenho paciência para sonhos. Criança nenhuma é criança, se não houver espaço para sonhos. E dificilmente, muito dificilmente, um homem como eu, que vi as sombras tomarem conta da claridade do dia, se atreveria a sonhar, depois de tudo. Seria um desleixo. E Deus sabe que tentei. Mas vou contar-lhes um segredo. Creio que vale tudo, ultrapassar valores e receios, fantasmas e obscuros meios, mas amar é, para mim, hoje, a mais bela forma de lutar pelo amanhã. O meu pai matou-se. Uns dizem que por não conseguir ultrapassar o a dor do luto e eu sei que foi naquele dia, naquela noite de Novembro, onde nos foi encontrar a foder que nem animais. Talvez não tenha entendido que a estopa e o fogo eram inimigos que, uma vez juntos, seria impossível separar!

Apaixonei-me pela mulher do meu pai e quando um dia, sem nem pensarmos, ele chegou da rua, encontrou-nos no quarto, no meu, a fodermos como dois crápulas, e nem demos conta que ele assistia. A vida acontecia, entre a embriaguez do desejo e o átomo destruidor. Isto e aquilo, sem nem sabermos. 

Ele suicidou-se depois de escrever uma carta, desejando-nos o melhor, que merecíamos, depois de tudo o que vivemos, de agonia pelo amor que lhe tínhamos. Matou-se com remédio de escaravelho. Não sei se odeio o meu pai ou se tenho nojo de mim. A Maria, depois de o enterrarmos, diz-me que está grávida. Que a vida quis assim. Que nenhum de nós teve culpa, que a estopa e o fogo são os arguidos deste lodo em que vivíamos. E eu digo que sim e peço à minha mãe, lá de cima, que a culpa que me baste, mas que não soube ser forte e combater a paixão que me tomou por dentro, que me queimou como cerne do alento, da dor maior de acreditar em deus, da vá esperança de sonhar. Vou ser pai do ventre rasgado da amante do meu pai. A cada um, as suas dores, o seu carma, a sua incapacidade de lutar contra a maré. A minha mãe perdoou-me, só falto eu perdoar-me. E tomara que tal aconteça, antes que a criança nasça. A Maria começou agora as dores do parto. E eu abandono os pensamentos de vergonha, quero iniciar a vida agora, agora, que a criança agonia na saída para conhecer a triste história da geração de luto e de medo e álcool e de fascínio. Que a vida é isto e aquilo, é incêndio e lenocínio, sonho urgente e martírio. E eu estou lá, vendo a criatura que já amo, sem conhecer, e que não quero, só não quero, não posso e nem permito que venha ao mundo para sofrer do tanto que me foi permitido sofrer. Quero o meu filho criança, tanto quanto possa ser. E terá o nome do meu pai. Como um totem, um amuleto de sorte, como a pedir perdão à vida por tudo o que se desenhou, contra a minha vontade. Não, não sonhei traição, ela aconteceu de uma forma a que não pude e nem quis dizer não. Porque a vida era isto mesmo, sem programas, nem agendas e nem extrapolações. Isto e aquilo. E nós, obedientes, vivíamos o que vinha, em qualquer condição. E tudo estava certo, obedecendo a algo maior do que a culpa, o medo, a vergonha e o combate. 

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