Sade Sati

 



Eu não podia entender mais. Nem melhor. Sei agora, tanto tempo depois. E digo-me a mim mesma, que somos todos crianças aos olhos dele. E que a nossa consciência vive entre lapsos, alguns demasiado penosos para refletirmos sobre. 

Saturno caprichou nos efeitos. Isso em Abril de noventa e oito. Porém, bem antes, deixar que te lembres que o stress e a pressão que tinhas sobre ti, sobre as obrigações, sobre os prazeres associados ao trabalho, sobre batalhas associadas a sucessos que não vieram, não da forma que as vi desenhares na nossa vida, para chegarmos aí, no desfecho. Eu estava lá. Tu também, ainda. Antes de Abril de noventa e oito. 

Volto atrás no repeat eterno, num looping que se quer compreender claro, eu a racionalizar um passado sem volta, sem alternativas, deixado ali, nesse pico do sade sati. Se eu me lembro, tu também. Tínhamos nos desentendido. A minha rebeldia raiava a revolta, como se tu pudesses ser o culpado de todos os maus sentimentos que havia vivido até te conhecer. Tu nunca foste culpado. Ao contrário, foste o responsável por ter vivido mais de uma década feliz, profundamente feliz. Dizem que somos felizes e não sabemos. Eu soube, a maior parte do tempo e tu sabias que havia traumas profundos que nunca deixei virem à luz. Primeiro, foi fácil, tomar a felicidade pelas mãos, na boca, na pele toda, no sorriso, nos dias e anos. É mais fácil valorizar o bem estar, depois de eventos muito maus. E eu soube, a maior parte do tempo. Depois, bem, depois a coisa complicou-se. Sete anos mostraram-me que não devemos tomar a felicidade como adquirida e tu disseste-mo. Mostraste-me. Foi isso que fizeste. Mas eu só via o que queria ver, de uma cegueira infantil. O ritmo da música começou a mudar, precisamente por causa da música. Porque a música nos separava, ao invés do efeito contrário que sempre tinha tido entre ambos. As divergências foram uma bofetada dada pela vida, testes que íamos ultrapassando ou guardando para falar depois. Depois. Sempre depois. E tu divergiste e eu também. E arranjaste outro alguém para apagar o meu nome, ou então, para esquecer a minha presença que ainda estava contigo. E eu fiz o mesmo. Depois tu vieste mostrar que não gostavas ou não querias que o teu nome fosse apagado. E usaste a desculpa do fruto. Havia o fruto e havia de ser protegido. Depois, levaste o fruto contigo, sem aviso prévio e eu tive que o resgatar. Depois, foram feridas na alma. E depois vieram as saudades. E foram marés cheias que me invadiram, na altura, desconhecia ainda o poder avassalador do oceano. Ou de saturno. Só sabia o teu nome e só conhecia o teu cheiro. No mapa do mundo no meu quarto só havia um continente. Eras tu. E depois, veio a esperança habitar-me, quando vieste buscar-me com um poema na mão e um abraço na outra. E depois, chegou um fruto, do qual nenhum de nós soube tomar, cuidar, dar-lhe nome, cama, espaço, peito. O jardim manteve-se com uma flor, mesmo quando semeei a esperança naquele dia, junto com a Páscoa. Depois pediste-me baixinho, para nem tu próprio ouvires, que resolvesse a questão eu, que fosse eu a tratar do assunto. Desse assunto. De outro coração que não fazia parte do nosso jardim. Que lhe era estranho, que lhe não era suposto. E eu obedeci. Eu tentei. Não fui sozinha. Fi-lo, mas a covardia tem sempre um gosto amargo, sobretudo se não é a nossa covardia. Porque da covardia dos outros, não podemos nós tomar-lhe o pulso. Somos impotentes perante ela. É ao outro que diz respeito. E disseste, para rematar o assunto que eu não tive como resolver, disseste-lhe que eu trazia um fruto no ventre.  Como forma de mitigar as coisas, de as resolver. O que ficou resolvido foi essa primeira parte, que a outra ficou por resolver. Ou seja, foi estancada, a do fruto do meu ventre. E tinha, mas provaste-me há muito pouco tempo que nem tu próprio sabias. E lembro-me, quando fecho os olhos, daquela sala com os cortinados ondulantes, do sabor metálico na boca, da botija de gelo no ventre, das lágrimas, do arrependimento, das noites no sofá, do álcool e das pastilhas para as enxaquecas, e depois lembro-me da gargalhada frequente que surgiu antes do momento da ceifa, durante e depois. Depois, entrei na fase crescente do abismo, daqueles abismos em que nos perdemos até de nós mesmos, sem deixar pistas para nos encontrarmos. E nem tu soubeste fazê-lo. Anos depois, dou-me conta que nem te deste conta disso. Como se eu trouxesse em mim histórias que não te pertencem, decisões tomadas a solo, imprevistos que não pudeste equacionar, só se fosses deus. Só se estivesses atento. E tu estavas imerso numa vida paralela à nossa, pendurado entre fios elétricos, entre stress e prazos imediatos, entre amplificadores e caixas de ressonância e máquinas de fumos e projetores e gente cheia de esperança de que tu resolvesses tudo, que tu não tivesses vida própria, ou que a tua vida andasse só ali, em volta deles. E assim foi. Assim foi. 

Depois lembro-me daquela gargalhada duplicada, daquele fruto que não amadureceu fora de mim, só dentro, a torturar-me, a levar-me à dor que tentei remediar nas fugas. Assististe às fugas, quando estavas. Na maioria do tempo, deixaste de estar. Tu que me dizias que as portas deviam estar trancadas, que as pessoas não eram confiáveis, que não eram o que pareciam ser, abriste as portas e as janelas, deixaste-te deslumbrar pelo fácil, pelo atalho, pelo mediático, porque o stress te oprimia, porque os outros tinham expectativas sobre ti, e tu tentaste cumpri-las até adoeceres na cama. Lembro-me que nessa altura, o meu amor era misturado a ódio e compaixão, tentativa de entendimento e fuga. As fugas definiram toda a década que veio a seguir. Foi nessa maré cheia de desilusão, de mágoa, de deceção que perdi a esperança. Primeiro deixei de a regar, chamei-lhe nomes, queria que sucumbisse à sede, como tinha feito comigo, depois, dei por mim a visitar os seus restos mortais, a esperança fedia e eu precisava ver o seu cadáver, amiúde, para ter mesmo a certeza que não era fruto da minha cabeça, que tinha perecido. De small panoti em small panoti, o esboço do sonho, ali estava, seco. E quando dei conta, nem tinha jardim, só um fruto guardado em casa, nas escolas, nas ruas, e foi tal a gravidade dessas marés cheias que a secura veio demonstrar que os sonhos, tal como dizias, devem ser regados, como os jardins, que as sementes devem ser cuidadas, que as plantas devem ser podadas e tu que eras jardineiro como eu, deixaste o ofício e partiste rumo a uma nova primavera. Em Abril, não choveu. Secou. E nunca morreu a semente. Os testes são tantas vezes mal observados que, qualquer jardineiro poderia detetar o arejo, as tempestades, o abandono e prevenir, podando, estrumando. Demiti-me de funções, tal como tu e depois só fugi. Tentando estar presente para ver o fruto amadurecer, tentando esconder a dor para o fruto não mirrar. A música foi o campo desbravado de ervas daninhas e, por outro lado, foi também o campo minado de onde surgiram as raposas calcar as rosas, os amores-perfeitos, pilhar as galinhas e arrasar a plantação.

Depois, éramos nós sem ti, éramos nós entregues à nossa incapacidade de ser inteiros, cada um fugindo da maneira que podia, que melhor sabia para que as dores não magoassem. O fruto deixou a música e eu adoecia a ouvi-la.E parar para olhar as dores era doloroso demais. Porque nos obrigava a deparar com a realidade que não estávamos preparados para. E a distância suavizou tudo, mas nunca matou a semente. E tanto não matou que continuei a ir, sozinha e acompanhada, a lugares onde podia ver-te, sem estares presente de corpo inteiro. E mesmo quando os sonhos não medram, não envelhecem. Sofrem pequenos revezes, os tais small panotis, mas não sabem morrer. Esse sade sati foi o início da minha fuga a saturno. Não se foge de saturno. Ele demora, mas chega, e quando ele chegar, mais uma vez, eu já terei estancado todas as dores, de todas as fugas, de todos os medos, de todos os lutos. Nesse dia, nesse ano, nesta vida, olharei os defuntos como se fossem pássaros libertos da sentença perpétua, da prisão a que me obriguei, a fim de aprender a mirrar os sonhos. E talvez tu sejas um desses pássaros a voar para o sol nascente. Ou talvez seja eu mais uma estrela no céu, de frutos maduros na terra. E só aí, possa voltar a espelhar-me no oceano em que te tornaste, depois de deixares o ofício de me podar. E no céu, não há sade satis. 

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