Feel So Different


Antes de ti e depois de ti, o mundo dos outros

O mundo ganhou propriedades de insónia, ascenderam ladrões e vigaristas, a glória triste dos fadistas rivalizou com os raps mais absurdos, e às mágoas foi entregue o nobel do disfarce crescente, os rios ganharam afluentes de poluição, a tristeza caminhou pelas ruas somando condecorações cruas e poluentes, a lascívia infetou corações e mentes, nasceram sentimentos de desprezo pela vida que devastaram muito mais que lixivia e detergentes, as auroras deixaram de ser boreais e os eclipses arquitetaram-se pungentes murros na esfericidade da suposta felicidade das linhas equatoriais. Foi profetizado para o planeta o acúmulo de tormentas distribuídas para todos os hemisférios, por igual, fosse qual fosse a sua dimensão longitudinal, o abstrato e o impressivo ganharam profundidade na plasticidade vivencial, tudo artefactos numa sociedade desigual. Inventaram matrizes e apps no ruído que antes era musical, fantoches ensandecidos de formol. Clonaram-se vias de mão dupla, criaram-se robots de substituição humana, numa total desumanização, excluíram-se pobres e marginalizaram-se cores e peles de todas as nações, iconoclastas do amor original. O universo ganhou novas galáxias e paralelos de incerteza, contaminado pelos medos e pela competição. Os homens se vestiram de armaduras de dor e fizeram a guerra para combaterem a paz. Nunca se viu tal ambição, nem nunca se foi tão longe na questão existencial da desumanidade. O amor vinga ainda, mesmo quando todos o pressupõem já morto e apodrecendo, o menino da sua mãe. E no dealbar da nova era que querem presumi-la e controlá-la e igualá-la às demais, erguem-se novos soldados, brigadeiros, homens de causas e generais para uma batalha entre trigos e joios. Perderão o tempo, se arrepiarão almas no caminho de regresso, mas para esse retrocesso, não vos aprumais, porque o acesso foi cortado aos bípedes anormais humanos. 






O meu mundo feito de ti

Depois do mundo te ter levado de mim, passei a caminhar de olhos baixos, sem ver, projetando no outro o meu ser, e desapreciando-me, de um tamanho desgosto de o mundo continuar sem ti, tentando preencher um vazio que eras tu de proporções descomunais, e fui dando lugar aos demais, e, chegada aqui, quando me foi dado o gosto de te ver e te falar, de te olhar novamente, depois de teres dobrado a esquina, mais uma vez, de partida para outras escolhas, depois de ti, que tu és marco histórico em tudo o que vivo, deixei que as sombras que me acompanham, me habitassem, me fizessem a doce companhia que só tu fazias! A paz sobreveio aos intervalos acariciar-me as tuas lembranças, o vento tirou tudo do lugar, mas tu permaneceste!

Como amo toda a sombra do silêncio, a solidão do teu rosto, a procedência dos meus pensamentos e dos teus atos que se não fazem, a não ser dentro de mim, a fotografia antiga, a alegria permanente do teu sorriso, dos teus olhos desiguais, dos teus cachos de cabelo na minha mão, do teu humor constante, do teu intelecto, da novilíngua que foste criando na minha pátria, dos teus beijos, abraços e desejos, tu sempre foste o engenheiro, o compositor, o arquiteto da minha casa, o meu adamastor predileto. E então, na tua ausência física, aprendi a amar-me, a priorizar-me, a ser eu a dar-me o que me davas tu, a dar-me destaque e valor, amor, tanto amor que me dou por ti; que depois de ti, enquanto partiste, ficaste, e tornaste-te muito mais que a memória, muito além das imagens, da história do país sem glória, depois de ti, ao nada transformei-o, assim, ainda em ti, no meu corpo, em ti, na alma e no espírito e faço destas imersas viagens o percurso da solidão mansa, depois de ti, as sombras, tomaram conta da nossa casa e é ainda nela que habito e que me faço feliz.

Depois de ti, volto ao antes, sempre, jardim, criança, no melhor de mim, onde ainda te posso encontrar, semeada esperança no mês do estio, em agosto. 

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