Encruzilhada explicada a crianças

 







O escapismo é uma disciplina sobejamente conhecida por quem viveu matérias densas, acontecimentos traumáticos, sem experiência para lutar contra as adversidades. Neptuno regula essa matéria. Escorpião conhece bem essa profundidade. A lua também. E neste mundo material, crianças mal-amadas, que crescem ao deus dará sempre encontram bifurcações ou encruzilhadas que as tornam vítimas do tal escapismo, que podem ser drogas (e esta é a sociedade mais drogada de todas, se não acreditam, meçam pela quantidade de ansiolíticos, neurolépticos e antidepressivos, álcool, e todas as drogas fabricadas em laboratório e fora dele consumidas por adultos infelizes e frustrados), pode ser efetivamente uma doença (que nós sabemos bem sermos produtores delas) ou as artes. O escapismo não é um lugar bom nem mau, é um lugar habitado pelos nossos fantasmas de estimação e pela nossa habilidade em saber lidar com eles. 
Quando me levantei, ainda dormia, foi o telemóvel longe do alcance da mão que me impediu de prosseguir no sono. O despertador ergueu-me, mas foram as preocupações que me levaram até à cozinha. Espreitei para o quarto da minha mãe, ainda dormia. O calor mantinha-se absolutamente desesperador e próprio da época, bastava aproximar-me da janela da cozinha, junto à banca. A orquídea, a espada de S. Jorge, os vasos de especiarias mantinham água nos pires e continuavam viçosas. E eu aqui dentro, refém, que é o que sinto há três anos, perguntava-me quando seria que iria acordar num jardim pleno, num mar encrespado ou ameno de temperaturas e longe das preocupações que me vão sufocando. Somos pobres figuras de retórica, marionetas instruídas para repetir o guião de outros, numa banda desenhada démodé, onde habituados ao sacrifício ou à falta de autonomia, nos embolamos, sem nem colocar em causa sair fora da caixa, do guião, da ditadura social e continuamos o caminho igual, praticando os mesmos erros, a mesma máscara, a mesmíssima tristeza que a morte já deveria ter engolido. E pior, a ensinar as crianças que assim tem de ser. Na minha experiência de quase-morte, o que me expulsou do paraíso não foi uma dessas figuras de retórica que havia sido colocada dentro de mim, foi a formatação padronizada, através do adn, que tem uma força brutal, do enraizamento de crenças velhas e absolutamente ultrapassadas de que devemos honrar e sacrificar o nosso self em detrimento dos selfs alheios. Primeiro a família e depois tu. Primeiro a mãe e depois tu. E sim, isto tudo vem de família e é obsoleto. Primeiro nós próprios e só depois os outros. Primeiro eu. Mas uma criança educada e regulada na caixinha obedece a esses padrões, mesmo que seja criada ao deus dará. No conhecimento enquanto psicóloga e docente, muitos casos me confirmaram esta verdade. Uma criança maltratada, seja na ausência de valores, de comida ou de afetos, mesmo quando retirada aos pais, mesmo quando tem todas essas coisas em excesso nas instituições promotoras e protetoras de menores, todas, todas elas escolhem, invariavelmente, voltar para as circunstâncias anteriores, para o lugar de pertença, para a encruzilhada onde foram colocadas ad hoc, sem responsabilidade e sem maturidade afetiva. Na realidade, o que me revelaram os meus ancestrais, a luz da minha verdade, o meu self, take it as it pleases you,  foi para seguir a minha intuição, o meu coração. Que me dizia ele? E eu quis ouvi-lo. Recuso-me, por motivos pessoais a revelar o que a fonte me disse. Também não tem interesse dizê-lo agora, basta-me conhecer essa verdade eu, que foi a mim que foi dito. E ainda assim, a formatação foi mais forte. Ganharam os outros. Perdi eu. Eu perdi, porque a minha bússola, self, centelha divina ou o que queiram chamar-lhe se deixou prender nos lismos da repetição de padrões, na permanência de valores caducos, onde o self não existe, exceto para os adultos, e que eles mesmos podem manietar, manipular e converter em escravos afetivos as crianças que não podem perceber a prisão, que é um lugar de chantagem emocional e onde adultos doentes, pelos mais variados traumas repetem o que lhes foi feito. E sair da repetição requer, mais do que coragem ou ousadia, pensar, colocar em causa, e tomar medidas que nos levam a rasgar a caixa, a formatação, a expectativa dos adultos. Não viemos realizar o sonho dos outros, senão o nosso. Nenhum pai, mãe, nenhum parente, nenhum adulto responsável pode exigir a nossa subjugação. Eu não vim ser a cabeleireira ou a médica que a minha mãe gostava. Somos livres, a partir do momento em que temos condições para voar. E a natureza ensina, a vida animal demonstra o que esquecemos, por estarmos reféns de velhos padrões familiares. Tenho 57 anos, sou uma das muitas crianças que cresceu ao deus-dará, onde a permissividade só não encontrou a promiscuidade por excesso de leitura e de carácter, creio. Sou cuidadora da minha mãe que tem atualmente oitenta anos e não quer ir para um lar, não quer viver com o outro filho, com quem sempre viveu, por não poder manipulá-lo mais e que encontrou em mim as circunstâncias de fragilidade e de pertença da velha roda repetitiva e como sou de compromissos, aqui me mantenho. Então, este texto é mesmo para crianças específicas, as criadas ao deus-dará, aquelas que vieram ser um acidente na vida dos adultos, aquelas que tiveram ausência de afetos, negligência de cuidados, e um facilitismo doentio, que mesmo não tendo falta de alimentos e nem de objetos caros, falharam alguns valores de somais importância. Não somos vítimas, a não ser das nossas escolhas, da nossa incapacidade de sair fora da caixa, da nossa ineficiência em rasgar estes véus medonhos. Que os adultos escolhem a vida que desejam e não a que lhes é imposta. 

Ontem ao almoço, depois de ter panado o polvo e ter feito um arroz de feijão, malandro, uma salada de pepino e tomate, depois de ter servido o copo da minha mãe, de a ter chamado para almoçar, veio com um semblante bem-disposto, embora demorada, começou a comer depois de nos termos servido e começou por dizer: Sonhei com o teu pai! Vê lá tu que nestes anos todos, nem uma só vez sonhei com ele e hoje sonhei com ele. E eu disse-lhe que tinha pedido a Deus que me permitisse vê-lo, eu que precisava de o ver, não sonhei com ele. Sorri e perguntei-lhe como foi o sonho. Ela disse-me que ele estava envelhecido, que já não era novo, que se preparava para subir uma ladeira, de pasta na mão, que ela estava junto da sogra que ela não gostava, a avó Bina e que o chamou: Francisco, onde vais? Não vieste dormir a casa, onde vais agora? O meu pai passou ao lado delas, sem olhá-las e prosseguiu. Disse-me que ele estava zangado. Não sabia se era com elas ou se com alguém mais. E que aquela pasta estava colada na mão dele, que caminhava como se a pasta fosse o mais importante e que devia estar a tratar de vidas, de pensões e reformas, que foi a última atividade profissional do meu pai, técnico da segurança social. Perguntei-lhe, se o meu pai estava envelhecido, como estava você e a avó Bina? Respondeu-me que estavam iguais, a avó Bina igual a quando partiu e ela própria como se encontra agora. Só o meu pai que morreu com trinta anos, envelheceu. Os sonhos são lugares de ninguém, não há quem os governe, não se pagam impostos e nem presidentes de república moram lá, não há títulos nobres e nem pessoas especiais. Eu sei, porque vou habitando, com regularidade, esses lugares e sei que é terra de nenhures. A mãe comeu tudo, mesmo o polvo que dizia não gostar. E ainda quis uma fatia de pão de ló. Não me pediu café e nem bagaço e assim que terminou, voltou a falar-me como se estivesse a pedir desculpa por existir. - Cristina, antes de ir, gostava que soubesses, não quero nada ser cremada, quando for. Quero ir para o mesmo lugar onde foi o teu pai, embora saiba que a tua família paterna não deixa, mas é pra lá que quero ir. Agora, vou para a sala. Talvez ela esteja, tal como eu, a pressentir a presença da negra imortal que vem ceifar o bem e o mal. Fazendo tábua rasa a todas as almas.

E a Eva fez-me recordar das quezílias da família a propósito do jazigo de família no cemitério de Campanhã, que a pedido da bisavó foi comprado, mas que a minha madrinha, casada com o filho da bisavó, o meu padrinho António a quem sempre humilhou, mandou colocar em seu nome, Alzira Guedes, apropriando-se de um lugar que não era seu. E é para lá que a minha mãe irá, se falecer enquanto eu tenho forças. Porque é lá que estão os resquícios do meu pai e é vontade dela lá ficar. E com a bisavó já eu acertei contas. Só me resta acertar contas com os vivos. 

E enquanto ela caminhou para a sala, eu fiquei a vê-la a caminhar, auxiliada na bengala, e aos seus pés o tapete de arraiolos que ainda está a fazer, ao lado um casaquinho de malha amarelo, na mesinha as sopas de letras e o estojo das canetas, o telemóvel e os óculos. Liguei-lhe a televisão sempre no mesmo canal, onde pode ver os programas das Júlias e dos peritos forenses, da música pimba e dos casamentos forjados, e eu voltei aos meus afazeres. Depois de ter alimentado os animais, retificado a água nos baldes e potinhos, de fazer mimos aos que compareceram, resolvi sentar-me para pensar nas minhas apoquentações e no rumo das coisas. Em progresso, mantenho o cordeiro que tirou o pecado do mundo, os emails que aguardo resposta do ICNF, do advogado, da NOS, do raio que os parta a todos, instituições que penduram pessoas numa espera indefinida, porque somos um número, um dossier que lhes não pesa nas responsabilidades e que querem colocar em pausa, pensando nas festas e nas férias, nos foguetórios e na superficialidade, nas águas convidativas e nos vouchers, nos investimentos na bolsa e na política internacional, nas desgraças comezinhas diárias e nas aflições dos outros, se estas forem televisionadas, nos escândalos das estrelas e nos novos bares, nos engates e em tantas outras coisas que estão longe de virarem empatia. 

Refugio-me, também eu, nas músicas relaxantes, nos livros e nos ensinamentos cabalísticos, na astrologia e em todas as ciências ocultas, porque essas deixaram de ser ocultas para quem sabe ler pessoas. E se dermos conta, o dia avança até à noite, o tempo queima e rasga as semanas transformando-as em anos, nada muda para melhor, e melhor que viver uma vida prisioneira das suas próprias escolhas, é, sem dúvida, esse lugar onírico, privilegiado, onde encontramos pessoas que, sem usarem a boca e nem as mãos, nos contam histórias de gente de verdade, gente que sente, gente diferente da que conheço, que as que conheci variam entre dois polos, ora mergulham a cabeça na areia para não verem, para não emitirem opinião ou não terem que arregaçar mangas para fazer a justiça, usando a covardia previsível, ou invejam de longe a vida anónima das pessoas que elas gostavam de ser e nunca se atreveram, que criticam e adoravam vê-las nos noticiários e nos necrotérios pelas mais absurdas razões. 

Nasci no século vinte e, deste século vinte e um, muito pouco me causa admiração humana. Ao contrário, as vidas todas dos séculos anteriores me mantêm com esperança no futuro, que através delas e das suas lições, vejo com lucidez e coerência o caminho da evolução. Vivi muitas encruzilhadas e reparem, as encruzilhadas são os lugares mais perigosos para nós humanos, pois é nelas que tomamos decisões, as erradas e as certas e que, quando vacilamos e não tomamos decisão atempadamente, nos arriscamos a ficar reféns de uma escolha involuntária. Este ano é uma grande encruzilhada para a humanidade e, por força do meu positivismo e não das circunstâncias que se podem verificar no nosso entorno, sei que vamos escolher o melhor caminho para contornar esta ameaça de implosão. E de encruzilhada em encruzilhada, vamos podendo imaginar o futuro, entre carros voadores e acertos humanitários, entre crianças amadas e justiças reguladoras que possam vivificar o que é a justiça afinal, senão os pratos onde a verdade e o arrependimento se equilibram, os direitos e os deveres sejam igualitários, na compreensão de que ao danarmos o outro, estamos a fazê-lo a nós, ao amarmos o outro, estamos a permitir que o amor comece em nós, que a retidão e o compromisso com os outros sejam, não só expectáveis, como mínimos exigidos. O amanhã é, ainda um não acontecimento, porém, não esqueçam de medir as vossas palavras, pensamentos e atos porque é com essa matéria que os amanhãs todos serão feitos. O positivismo tem de ser a melhor app, junto com a inteligência, junto com sonhos e vontade de lutar por eles. Não há adulto nenhum que possa podar os teus sonhos. E se consideras que sim, não reveles os teus sonhos, comunica o menos possível de ti. Que os inimigos crescem, misturam-se e mascaram-se, como teus parentes e amigos. E aprende a ouvir o coração, porque esse é, sem qualquer dúvida, o teu melhor amigo. Aprende a amar-te a ti e a confiares em ti, acima de qualquer outro ser humano. E lê a natureza, ela é fiel mais do que a maioria dos humanos. Tu és o teu melhor amigo. E se consegues ser o teu melhor amigo, aprende a valorizar-te, à tua integridade, à tua consciência, descobrindo mais e mais de ti. Tu és um ser humano fantástico e vieste viver isso mesmo, a matéria dos teus sonhos e aprender a discernir nas encruzilhadas, para onde te manda o teu coração e não a ouvir a opinião dos outros. Os outros serão sempre os outros, responsáveis por si mesmos. Tu és a parte mais importante do teu mundo, nada se sobrepõe a ti, ninguém pode fazer de ti aquilo que não aceitas. Devemos ser flexíveis, mas não em matéria de sonhos e de escolhas de vida. Essa é a verdade que semeará o vosso caminho, a matéria do vosso sonho. E podem vir muitas encruzilhadas, muitas decisões a tomar, mas sejam perspicazes e escolham as lutas que querem travar. Priorizem-se a si mesmos. Os outros fazem o mesmo. Não podemos dar amor, a não ser que sejamos nós amor também.

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