Encruzilhada explicada a crianças
Ontem ao almoço, depois de ter panado o polvo e ter feito um arroz de feijão, malandro, uma salada de pepino e tomate, depois de ter servido o copo da minha mãe, de a ter chamado para almoçar, veio com um semblante bem-disposto, embora demorada, começou a comer depois de nos termos servido e começou por dizer: Sonhei com o teu pai! Vê lá tu que nestes anos todos, nem uma só vez sonhei com ele e hoje sonhei com ele. E eu disse-lhe que tinha pedido a Deus que me permitisse vê-lo, eu que precisava de o ver, não sonhei com ele. Sorri e perguntei-lhe como foi o sonho. Ela disse-me que ele estava envelhecido, que já não era novo, que se preparava para subir uma ladeira, de pasta na mão, que ela estava junto da sogra que ela não gostava, a avó Bina e que o chamou: Francisco, onde vais? Não vieste dormir a casa, onde vais agora? O meu pai passou ao lado delas, sem olhá-las e prosseguiu. Disse-me que ele estava zangado. Não sabia se era com elas ou se com alguém mais. E que aquela pasta estava colada na mão dele, que caminhava como se a pasta fosse o mais importante e que devia estar a tratar de vidas, de pensões e reformas, que foi a última atividade profissional do meu pai, técnico da segurança social. Perguntei-lhe, se o meu pai estava envelhecido, como estava você e a avó Bina? Respondeu-me que estavam iguais, a avó Bina igual a quando partiu e ela própria como se encontra agora. Só o meu pai que morreu com trinta anos, envelheceu. Os sonhos são lugares de ninguém, não há quem os governe, não se pagam impostos e nem presidentes de república moram lá, não há títulos nobres e nem pessoas especiais. Eu sei, porque vou habitando, com regularidade, esses lugares e sei que é terra de nenhures. A mãe comeu tudo, mesmo o polvo que dizia não gostar. E ainda quis uma fatia de pão de ló. Não me pediu café e nem bagaço e assim que terminou, voltou a falar-me como se estivesse a pedir desculpa por existir. - Cristina, antes de ir, gostava que soubesses, não quero nada ser cremada, quando for. Quero ir para o mesmo lugar onde foi o teu pai, embora saiba que a tua família paterna não deixa, mas é pra lá que quero ir. Agora, vou para a sala. Talvez ela esteja, tal como eu, a pressentir a presença da negra imortal que vem ceifar o bem e o mal. Fazendo tábua rasa a todas as almas.
E a Eva fez-me recordar das quezílias da família a propósito do jazigo de família no cemitério de Campanhã, que a pedido da bisavó foi comprado, mas que a minha madrinha, casada com o filho da bisavó, o meu padrinho António a quem sempre humilhou, mandou colocar em seu nome, Alzira Guedes, apropriando-se de um lugar que não era seu. E é para lá que a minha mãe irá, se falecer enquanto eu tenho forças. Porque é lá que estão os resquícios do meu pai e é vontade dela lá ficar. E com a bisavó já eu acertei contas. Só me resta acertar contas com os vivos.
E enquanto ela caminhou para a sala, eu fiquei a vê-la a caminhar, auxiliada na bengala, e aos seus pés o tapete de arraiolos que ainda está a fazer, ao lado um casaquinho de malha amarelo, na mesinha as sopas de letras e o estojo das canetas, o telemóvel e os óculos. Liguei-lhe a televisão sempre no mesmo canal, onde pode ver os programas das Júlias e dos peritos forenses, da música pimba e dos casamentos forjados, e eu voltei aos meus afazeres. Depois de ter alimentado os animais, retificado a água nos baldes e potinhos, de fazer mimos aos que compareceram, resolvi sentar-me para pensar nas minhas apoquentações e no rumo das coisas. Em progresso, mantenho o cordeiro que tirou o pecado do mundo, os emails que aguardo resposta do ICNF, do advogado, da NOS, do raio que os parta a todos, instituições que penduram pessoas numa espera indefinida, porque somos um número, um dossier que lhes não pesa nas responsabilidades e que querem colocar em pausa, pensando nas festas e nas férias, nos foguetórios e na superficialidade, nas águas convidativas e nos vouchers, nos investimentos na bolsa e na política internacional, nas desgraças comezinhas diárias e nas aflições dos outros, se estas forem televisionadas, nos escândalos das estrelas e nos novos bares, nos engates e em tantas outras coisas que estão longe de virarem empatia.
Refugio-me, também eu, nas músicas relaxantes, nos livros e nos ensinamentos cabalísticos, na astrologia e em todas as ciências ocultas, porque essas deixaram de ser ocultas para quem sabe ler pessoas. E se dermos conta, o dia avança até à noite, o tempo queima e rasga as semanas transformando-as em anos, nada muda para melhor, e melhor que viver uma vida prisioneira das suas próprias escolhas, é, sem dúvida, esse lugar onírico, privilegiado, onde encontramos pessoas que, sem usarem a boca e nem as mãos, nos contam histórias de gente de verdade, gente que sente, gente diferente da que conheço, que as que conheci variam entre dois polos, ora mergulham a cabeça na areia para não verem, para não emitirem opinião ou não terem que arregaçar mangas para fazer a justiça, usando a covardia previsível, ou invejam de longe a vida anónima das pessoas que elas gostavam de ser e nunca se atreveram, que criticam e adoravam vê-las nos noticiários e nos necrotérios pelas mais absurdas razões.
Nasci no século vinte e, deste século vinte e um, muito pouco me causa admiração humana. Ao contrário, as vidas todas dos séculos anteriores me mantêm com esperança no futuro, que através delas e das suas lições, vejo com lucidez e coerência o caminho da evolução. Vivi muitas encruzilhadas e reparem, as encruzilhadas são os lugares mais perigosos para nós humanos, pois é nelas que tomamos decisões, as erradas e as certas e que, quando vacilamos e não tomamos decisão atempadamente, nos arriscamos a ficar reféns de uma escolha involuntária. Este ano é uma grande encruzilhada para a humanidade e, por força do meu positivismo e não das circunstâncias que se podem verificar no nosso entorno, sei que vamos escolher o melhor caminho para contornar esta ameaça de implosão. E de encruzilhada em encruzilhada, vamos podendo imaginar o futuro, entre carros voadores e acertos humanitários, entre crianças amadas e justiças reguladoras que possam vivificar o que é a justiça afinal, senão os pratos onde a verdade e o arrependimento se equilibram, os direitos e os deveres sejam igualitários, na compreensão de que ao danarmos o outro, estamos a fazê-lo a nós, ao amarmos o outro, estamos a permitir que o amor comece em nós, que a retidão e o compromisso com os outros sejam, não só expectáveis, como mínimos exigidos. O amanhã é, ainda um não acontecimento, porém, não esqueçam de medir as vossas palavras, pensamentos e atos porque é com essa matéria que os amanhãs todos serão feitos. O positivismo tem de ser a melhor app, junto com a inteligência, junto com sonhos e vontade de lutar por eles. Não há adulto nenhum que possa podar os teus sonhos. E se consideras que sim, não reveles os teus sonhos, comunica o menos possível de ti. Que os inimigos crescem, misturam-se e mascaram-se, como teus parentes e amigos. E aprende a ouvir o coração, porque esse é, sem qualquer dúvida, o teu melhor amigo. Aprende a amar-te a ti e a confiares em ti, acima de qualquer outro ser humano. E lê a natureza, ela é fiel mais do que a maioria dos humanos. Tu és o teu melhor amigo. E se consegues ser o teu melhor amigo, aprende a valorizar-te, à tua integridade, à tua consciência, descobrindo mais e mais de ti. Tu és um ser humano fantástico e vieste viver isso mesmo, a matéria dos teus sonhos e aprender a discernir nas encruzilhadas, para onde te manda o teu coração e não a ouvir a opinião dos outros. Os outros serão sempre os outros, responsáveis por si mesmos. Tu és a parte mais importante do teu mundo, nada se sobrepõe a ti, ninguém pode fazer de ti aquilo que não aceitas. Devemos ser flexíveis, mas não em matéria de sonhos e de escolhas de vida. Essa é a verdade que semeará o vosso caminho, a matéria do vosso sonho. E podem vir muitas encruzilhadas, muitas decisões a tomar, mas sejam perspicazes e escolham as lutas que querem travar. Priorizem-se a si mesmos. Os outros fazem o mesmo. Não podemos dar amor, a não ser que sejamos nós amor também.
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