Al Qabri Ramos
Teço no calor
da estação,
a saudade,
do fio húmido do teu olhar
com o intrépido frio
e feio desenrolar das horas,
queima-me nos dedos o cigarro
por esta febre de não o pausar
enquanto escrevo,
como se pudesse deixar de captar,
como se te perdesse,
a ti e ao fio húmido desse olhar
ao qual me mantenho cativa
e fiel,
teço com os dedos cansados
a cinzel,
a longura dos anos
e o espaço que permeia
a tua ausência
mas não pode frear
nem freia,
a alegria
da música que construíste
como se fosse chuva
aliviando o asfalto,
depois do sol bem quente
descer ao mar
e a lua subir ao alto,
teço o amor
qual Rapunzel,
enquanto se murmura
e comemora
a minha loucura na tua apatia
displicência,
abandono,
desprezo, desdém,
petulância,
e medem-me tudo
nas esquinas da fala
fácil, volátil, projétil
comparam-me com o esteio
da sua era de plástico
de cada feitura sua,
tentam espelhar em mim
as suas feiuras e os seus gestos,
enquanto te teço
e medem-me à distância,
na concomitância
de uma circunferência fechada
E eu teço o espelho
onde poisam os teus olhos
esta noite
teço o amadurecimento
do desejo rente ao beijo que te dou
neste tecido
atual
em que nos preencho
as décadas pausadas
teço-te com as mãos abertas
as costas curvadas
teço-te o corpo,
o vulto
o perfil exausto do teu rosto
as tuas sobrancelhas,
e abençoo o
indulto, o perdão,
apago-me o desgosto
da constatação
da manipulação
a surtir o efeito
as crianças usadas pelas mãos
de adultos astutos,
numa cumplicidade concreta
que se pagará à frente,
a cada um na sua fatia,
mas este poema tecido cobre-te,
a ti e a mim,
que já paguei bem mais do que teci
que já morri mais por dentro
do que os cem anos
que epopeiam o século
do que o jardim
que nos vilipendiaram.
Teço-te a oração nos lábios,
teço-te os joelhos em prece,
na laje do caminho,
teço-te de oiro e pergaminhos
teço-te a doce lembrança
do carinho
onde as máscaras dos outros caem
onde nenhum impedimento
se faz
para te trazer ao destino,
meu amor,
devagarinho
vou tecendo o amor primeiro
o amor em primeiro
que se espalha como mel
na colmeia das palavras
da abelha rainha.
Teço, meu amor,
com todo o cuidado
a fé neste amor
que se deitou ao meu lado
desde quando te perdi,
teço a líquido quente,
a limalha,
teço a muralha
que me guarda o teu sabor.
E de esguelha,
meu amor, deito-me novamente
na estação, depois de apagar
o cigarro,
que morre no cinzeiro,
o fantasma
do passado,
e retenho
em mim, só em mim
esse tecido já velho
que vou renovando
à medida que a ampulheta avança
tecendo uma trança,
adormeço abraçada ao que teço
de ti,
no cabeço vejo-te correr,
eterna criança
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