Hoje é só isto, paizinho


Hoje estou derrotada. Sim, pai, tu sabes como me sinto. 
E não obstante a alegria que me ensinaste a plantar, essa alegria que é minha, inata e que vem de ti, Pai, é de ti que vem, hoje não tem mais. Seca, pai, estou seca, exausta, derrotada. Não posso pôr-me de joelhos, sabes que não tenho força, hoje não. As mãos cheias de bolhas de água e calos, de limpar dentro e fora, de acompanhar os que são pagos para cortar árvores e giestas, e que mesmo sendo pagos, ainda me pedem isto e aquilo, como se na minha testa dissesse da minha bondade, da minha alma, pai, expiam a minha alma para abusarem de mim. Não, Pai, hoje não posso mais. Fim da linha, bisavô. 
O portão que o meu primo Alfredo rebentou hoje caiu. Caiu aos meus pés, quando ainda tenho o carro todo estragado dos danos que ele cometeu, não só no portão, mas na casa, no dinheiro, na minha confiança. São danos a mais. Todos abusaram de mim.
Pai, a imagem preservada dos meus braços à volta do teu pescoço, de me dizeres que eu podia ser o que quisesse e eu te dizer, que para além de bailarina e de missionária, eu ia escrever para os meninos, sabes pai, não posso escrever para meninos, porque sabes pai, os meninos precisam de histórias bonitas, de acreditar no impossível, nos sonhos, na magia, e isso pai, já não tenho mais para lhes dar. Afinal, quando eu dizia que ia escrever para eles, não era histórias bonitas, paizinho, eram histórias reais, da feiura da humanidade, dessas crianças crescidas que ficam felizes na dor dos outros. Sabes pai, estou tão cansada deste planeta! Estou tão desacreditada desta humanidade que hoje pai, hoje, só hoje pedia-te, por favor, para me levares para longe daqui pai, leva-me a ver as estrelas, pai, peço-te, com estas bolhas na mão, mas mais do que isso, pai, com o meu coração a sangrar da cor escura da deceção, hoje paizinho, leva-me, leva-me esta noite ao céu, nos teus braços, pai, pai, tenho tantas saudades tuas. 
As horas cresceram como uma matilha de chacais todos os dias, desde as sete da manhã a pé, depois de me ter deitado às três da manhã. O duche está com um curto-circuito e após a denúncia que a EDP recebeu sobre nós e que veio ser fiscalizada, também descobriram um curto-circuito na base do duche que pode comprometer-nos alguns riscos no banho diário. A vizinhança encontra serventia feliz em atirar bonecas de voodoo feias e cheias de alfinetes espetados, na nossa churrasqueira, peles de cães esfolados, sacos de lixo imundos que deixam fora do contentor para que a cadela os arraste e os espalhe, para me verem a apanhar o lixo deles. A Kirie entrou no cio outra vez e de todas as tentativas e apelos que fiz para que me auxiliassem a resolver o problema dela, só o IRA me respondeu, dizendo ser de Lisboa e nada poder fazer. Pai, Pai, que faço eu com tudo isto, pai? Entre urgências de hospital por mais uma infeção urinária, a mãe continua a fazer birras, que não quer comer isto e nem aquilo, só aquilo, alimentando a sua superficialidade entre a televisão o o quarto, falando sempre das desgraças (soubemos por ela que morreu o Daniel Mastral, que nem sabemos quem seja) e se não fosse o Tomás com o seu humor peculiar, eu já teria desistido para sempre, pai. Dizias que eu era forte, dizes que eu posso, que levo, que arrasto, pai, é verdade, eu posso, mas a que preço?
Tenho contas a ajustar com Saturno, preciso de me fechar com ele no quarto e lhe contar as histórias que são os fragmentos da minha existência que abriram outra vez a ferida que não cura, paizinho. Hoje sou outra vez a criança triste, injustiçada, maltratada, abusada, hoje não quero ser empata, hoje só quero o teu colo, Pai, o teu pescoço, onde sossegar o meu espírito. Pai, hoje vem zelar o meu sono, paizinho, hoje vem mostrar-me o teu céu. A ver se descanso. Preciso tanto de ti hoje, pai. 

Comentários

Tiago Branco disse…
Doce, azedo, súplica e deleitosa escrita (Luk).
Nina Owls disse…
Súplica, cansaço, Luk (Tiago)

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