Retratos sociais

 



Não conhecia ninguém naquela terra. Quando ali chegou. Nada, nem ninguém. Só o que agora era seu marido. Já não se lembrava porque tinha arriscado tudo por aquele fulano, ou lembrava? Como boa capricorniana que era, com um costado em touro, ela sabia que queria mais do que havia na sua terra! E ali, no seu habitat natural, nem a senhora da agonia lhe dava púcaras de água. E os santos à porta nunca fizeram milagres nenhuns. Ele era casado, mas deixara a mulher para ficar com ela. Portanto, mudar de ares, ir viver para perto da família dele não havia de ser tão mau, que sentia como se fosse uma espécie de estrangeira, uma mulher moderna, a aparência contava muito, na sua cabeça, sim, a sociedade media-nos pela aparência e ela parecia mesmo uma estrangeira. Casou com ele e era tudo tão bonito. A filha dele tinha quase a sua idade. E estava perfeito. Ele tinha tanto de bonito como de fraco, mas essas contas só se faziam em casa, o que importava era a aparência, a excelência do modelito, e na opinião geral, era um homem fraco e bom. O emprego não era perfeito, mas a casa era. E era, muito graças à sua insistência em lhe dizer que uma casa alugada não estava com nada, que queria uma casa decente, daquelas de causar inveja à sociedade daquela terrinha medonha. E deu-se conta que ele era fraco. Muito fraco. Em tudo. Sobretudo com a bebida. Apalpou-lhe os pulsos e viu que atrás daquele homem fraco, estava uma grande mulher. Ela. Era muito leviana, tinha que admitir e, tão mentirosa que passou a acreditar nas suas próprias mentiras. E tinha-se juntado a fome com a vontade de comer. E estava tudo bem, desde que essas verdades feias ficassem ali por casa, desde que a nódoa não trespassasse para o olhar social e familiar, que fazer? Ninguém nasce perfeito. Ele nunca lhe tinha dito que era perfeito. Ao contrário, tinha lhe confessado que era fraco e ela sabia que sim, que era. E estava tudo bem. Com isso podia ela. 

A "estrangeira" vivia no agora, era tudo agora, agora e muitos amigos, amigas e muitos mediatismos e fanfarronice e mentirada. Era tudo às mãos cheias. A inveja era a sua conselheira e a cobiça, junto com a preguiça eram suas empregadas. Quando chegaram os problemas, vamos dizer que lhe tiraram o sono duas ou três noites, não mais, que da sua cartola, tirava sempre coelhos, ou ia à cartola dos outros, sem que soubessem, evidentemente. Quando começou a ter casos, dizia em casa ó coiso, eu vou ajudar uma amiga, que sabes, ela precisa de mim, amanhã volto, tu não te preocupes e comes na cantina, ah, não, não podes, olha o menino, traz da cantina comida para ti e para o menino. Queres ver o telemóvel para veres que é mesmo esta amiga? Amanhã falamos ou assim. E ele dizia que sim. Porque ele era fraco. A bebida deixava-o fraco. E mole. E de alguma maneira, sempre que ela ia para as amigas, vinha cheia de prendas e de dinheiro, como se tivesse ido à feira do Bolhão. Que agora é mercado. Mas dizia eu que o marido era fraco e mole, mas parvo não! Lá tinha conseguido um emprego camarário, não era mais que funcionário, mas era seguro, então não era isso que um homem podia querer? E quando os problemas doeram e os amigos não a consolavam, desde os casados aos viúvos, dava voltas e mais voltas à cabeça e descobriu como havia de dar conta do recado. E contou ao marido: Ó filho, vamos fazer assim, divorciámo-nos, mas é só para efeitos legais, que a mim ninguém me vem tirar a casa! E o coelho saiu da cartola, todo larota, segurou-se a casa, divorciados sim, mas só de fachada, cara bonita, mais compra aqui e compra acolá, sabes que preciso de mudar de roupa, que não estou habituada a andar sempre com a mesma roupa, e sapatos e carteiras e uma data de acessórios, olha, trabalha se queres, nós já estamos divorciados, ou terei que voltar para a casa dos meus pais. A leviandade era um acessório diário, uma máscara catita em que o povo acredita! E vai disto, que o homem nem sabia o que havia de fazer à vida! E muitos acessórios depois, deve ter-lhe caído o saturno pelos cornos abaixo, e disse ao marido que queria trabalhar, mas não podia ser em qualquer sítio, não, tinha que ser assim um sítio onde estivessem doutores e isso, onde se misturasse o pão com o chouriço, onde pudesse cobiçar o que dela não era. E entrou lá no serviço bonito, que era onde as pessoas se vestiam bem, saíam pela porta da casa grande, para aquela cidade pequena, trabalhar com as crianças, um dia ainda chegaria a professora, porque não? E comprou um novo carro. E lá ia toda arranjada, com um contrato semestral, nada mal, até expirar a data. Aí, vieram mais noites sem dormir, tinha que descobrir como inventar mais um coelho à cartola, porque a coisa assim não andava e não tardava nada, teria que ir aos pais pedir esmola! Isso é que não! que à sua mãe lhe nasceriam os gritos, que ela era tola, que sonhava acordada, que vendesse a casa, os móveis, o que quisesse, mas a vida não era só festa! E não fiquem com pena do coitado do marido, que era cornudo e não conhecia a verdade, enganam-se que ele sabia ser essa a forma perfeita de chegar a carne do talho a casa, e ela p'la família fazia tudo!

Uma das funcionárias do seu trabalho catita, que era mui estimada, e que por isso, com certeza por isso, porque a achava pedante, assim, como se fosse o seu espelho, lá descobriu a forma de lhe acabar com o emprego e vai disto, projetou-a "sem querer" abaixo da escada, e deu-lhe cabo do joelho! Ui, a sua mente estarola, por magia da cartola, a estrangeira multiplicava os coelhos! A pobre enferma é que ficara em casa a convalescer e claro, no seu contrato a expirar, não iam mais ninguém procurar, ela seria perfeita para a substituição. E assim foi! E Deus existe, e o sacrilégio da hipocrisia tinha nome, que a estrangeira até dizia, a quem a queria ouvir que os anjos eram seus amigos, que lhe caíam plumas e penas, no chão e pelas pernas abaixo e acima, dizia. E os dias somavam-se como quem soma contas de multiplicar, que ela era boa de finanças, para vinho é que não ia o dinheiro conjugal. A não ser para as suas garrafas de espumante que dizia a toda a gente beber na cama, sempre sozinha. E a idade chegava, vinha devagar e até a enganava, que afinal, haveria de demorar, e ela tinha tantos planos e todos cheiravam a ganância e a facilidade. Nunca a vi desmanchar-se, dizer ah, coitadinha de mim, não, e menos ainda coitadinhos dos que me rodeiam. Era tudo fantasia, a vida, os dilemas, a cartola, o marido pintarolas e dois dedos de prosa. Foi eliminando os amigos que conheciam a peça de perto. E estava tudo certo. Não fosse a porra do carma, ainda havia de roçar a sarna, digo, a cartola, para acabar com a asma que sentia quando as finanças corriam pior. 

Faça-se daqui um doutor, por alvará do Relvas e que sirva de conduto para a alta roda social. E não estava nada mal. Se fosse tudo um bacanal. Um dia a cartola fica pequena, a saia justa ou gasta e acaba-se a sinfonia, a mordomia, o Carnaval. O disposto encontra-se em qualquer parte do tecido social estrutural e descomunal da santa Sociedade dos hipócritas. Mas filhos, o que importa não é ser, mas parecer. E eles parecem tão bem, não é? Tenham cuidado, não vão encontrar gémeos que vos projetem com uma porta e vos acabe a bolota na casa do estado! Caros contribuintes e afins, cartolas não, mas Vasco Santana já dizia: chapéus há muitos!

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