Parir binómios em tela de fé





Ela desenha a garatuja do jardim, que podia ser autobiográfico, um personagem retórico, para não dizer eu, dizendo ele, que é emprestar a minha pele a outro que tomo como eu emprestado, como heterónimo, que pode ser, afinal, o antónimo absoluto do que estou a viver. E rasuro o jardineiro, que és tu ainda, com a mão repleta de sementes para a replantação do viveiro de flores. Que viver é recriar o amor, engravidar o ventre de gémeos, na condição de nutrir apêndices, construir ou destruir ou tornar verdade o que não era, omitir, somar ou subtrair na criação sobre alguém ou alguma condição. Bafejo no vidro da janela, o mote do meu nevoeiro, na sua superfície lisa, gastando o teu nome, que é dizer, o nome de todas as coisas apreendidas contigo e depois de ti. E sabe a salitre e a manso, e cheira a ternura e a alfazema. E ao invés de estio, escrevo janeiro, que dele vieste primeiro povoar o seu mapa. No decomposto oceano, pinto o rio de outros, reescrevo, reedito agora a história do desdobramento de Frost, penduro-me na estrada não tomada. E quando o faço, permito-me a reciclagem, cedendo o meu lugar, então, a outro, num mundo novo e pulsante, de pinceladas, ora lentas, ora apressadas, onde a aguarela de antes só sabia o contorno do teu nome, cálido e casa, agora apaga o teu nome e reescreve a primavera que já passou e de novo virá, ultrapassando e ponteando as ervas, as giestas novas e sempre verdes, e sempre frescas, os formigueiros, as pedras soltas, o velho portão onde a tinta cedeu às temperaturas altas, e a madeira à humidade constante, o caminho da terra e da gravilha natural do piso irregular. A natureza tem a sua mão própria e invade os seus habitats que o homem lhe tomou emprestados e é ali, nesse pedaço de caminho que a fé surge restaurada, matizes diversos, texturas intensas, e, enquanto não atinjo o cotovelo do caminho, antes da bifurcação, atrevo-me a visualizar o rompimento com o decadente para vislumbrar o novo. Na vez de gritar adeus, arrisco a sussurrar até já e pendurar a saudade no ombro da árvore onde tudo foi já feito, o ninho, o riso, o leito, o amor do jeito que só tu fazias. E ao aceitar romper com a limitação de agosto, escrevo o composto do que permanece e que ainda torna prenha qualquer segunda-feira. E o jargão dos escravos alforria-se na tarde das minhas dores que hão-de parir o amor antigo já novo. Encosto-me ao cajado natural da velha árvore, testemunha de tantas decadências antigas, esse eu que foi fecundo e que se tornou estéril nas mondas da vida, e sorvo o ar novo que cheira a madressilvas, a papoilas e malmequeres. Ali, o pincel rompe com o antes e não se detém mais. O esteta inebriado pinta, num dialeto interno com a paisagem que retrata. E oferece-me a refrescante visão que procurava, tingida de uma esperança imaculada e abrangente, que modela os caminhos, que faz nascer com o seu corpo mergulhado nas águas tingidas de meio de Julho. Os caminhos revelam-se após a perda do medo, das ilusões velhas e decrépitas que foram lapidadas por todos os eus passados e cristalizadas pelas deceções. O atrevimento e a ousadia de trilhar um caminho inteiramente novo, depois dos temporais me terem defraudado. E ontem era a minha mão que escrevia o teu nome, no vidro, no pavio retumbante do orvalho da minha saudade, e ainda há pouco, a mesma mão que sumia com ele, e que criava agora novos nomes para dizer que o amor pavimentou o caminho, que aquilo que foi o teu nome deu lugar a um terreno fecundo, e que ainda agora era ontem, e ontem se fez hoje, porque ontem era a melodia triste, vestida de angústia periclitante, que se alimentava de sombras tecidas pelo teu nome, na sombra de todos os fantasmas que me acompanham, que hoje, que é o mesmo que dizer agora, com o restolho do cadáver e dos restos mortais do teu nome desenhei asas a um pássaro, que ainda és tu, mas sem vocábulo, se viu livre e experimenta agora novos voos, novas formas de dizer o amor, de o mostrar ilustrado em meio a papoilas que se não domesticam. Nem ao pássaro cresceram grilhões, nem gaiolas, nem regras e nem ornamentações. Nem politicamente corretos e nem instituições obsoletas. A ladeira íngreme vê-se vencida, o queixume de antes construiu acordes no trino daquele pássaro sem nome feito de ti. Ainda ontem tu eras a céu e o firmamento onde as estrelas se penteavam, ainda ontem, ainda ontem. E o teu nome que sempre foi um nome cheio de tanta coisa que se deixa por dizer, tornou-se caudal e fonte, rio, estrada e monte, e concorreu a uma tela onde já nada se distinguia. Amálgama do que eras e do que serias. E tu serias e serás o pássaro que fez ninho nos meus cabelos, que deles fez o novelo para esconder os seios, que nele se fecundou num ventre materno e hoje, a velha tela é só lembrança, que a fé tomou conta de mim e dela, e no pincel transformou o que era nuvem na janela onde já não escrevo o teu nome, onde a liberdade é trauteada pelas aves em claves de sol em meio a trigo suculento que alguém há-de vir ceifar para nutrir. E os meus antigos anseios que de mim se faziam cansaço costumeiro, que os ouvidos teimosamente surdos repetiam o teu nome, congregaram para a criação de alguns acordes progressivos, e no cimo da ladeira, o desdobramento acontece e nada se faz de repente, que é necessário estrume, água e a dor que nos adoeceu ser semente, o cotovelo do caminho aponta a bifurcação, sem nada que o impeça de se materializar, a liberdade de pensamento devolveu-me a ousadia ao olhar, o atrevimento à caminhada e a escolha quando lá chegar. Os sapatos são velhos, os pés é que se desenharam novos, os sonhos são antigos, a fé é que os regenerou. E ela descalça-se e entra na tela.

Não sei se a minha covardia reconheceu metáforas de Frost enquanto sedimentos Huxlianos eram paridos na escuridão, mas sei que os instrumentos musicais das velhas orquestras encontraram servidão na nova funcionalidade de dizer a verdade, de romper com o que se guarda, de dar vida às crateras e aos vulcões, expor as orações escondidas, misturar bem, juntar água quanto baste, um lá e um sol sustenidos da vidraça, esta mulher livra-se de tudo, defronte à tela, encosta as costas na parede amarela da paisagem de verão, dos rins a dor que sobe pelas costelas, e apoia o ventre fecundo com a sua mão que, outrora escreveu o teu nome pelas janelas, como se as letras do teu nome abrissem valas aos sonhos dela, e vai parir a poesia ali mesmo, no chão onde o teu nome foi desenhado por um pincel velho, e ali mesmo, debaixo da pérgula, rasura o cotovelo à estrada e em frente a ela, ei-la, a encruzilhada, a bifurcação. A escolha que fará estrada na vida dela. As águas rebentam, bolsa nenhuma as contém, os gritos são puro canto da fé, da imersão na poesia, que o segredo não está nas quantidades, mas na qualidade dos ingredientes. E depois do parto, no canto da tela, onde antes ela reescrevia o teu nome, agora escreve inverno e abril e esse teu nome apagou-se na bifurcação das dúvidas e do caudal amniótico, profusão de águas mil, nasceram novas criaturas, um sol em miniatura, um amuleto de sorte, uma sinfonia sem autor, nas novas folhas da vida, ela podia reescrever o teu nome, sem precisar de o limitar à forma, às vogais, aos axiomas, aos estados temporais de dizer amor ou de gritar saudades. Nas folhas escrevia-se chá nos finais da tarde, e café nas manhãs de domingo. Ela desenhou um sorriso ao novo renascido do teu adn, que é a tua pele ter sido semente e ser piso e abrigo do jardim que não soube perecer. Nela, nenhuma vontade de antecipar o futuro, mas antes aquela sede infantil de saborear os fonemas vida, sol, alegria, infância, mar, céu e agora. Um baloiço ausente de tempos verbais, de limitações nos antónimos e nas pontuações. E aquilo que havia sido cansaço era outra coisa, nem quem-me-dera, nem nunca mais, nem adjetivos e nem determinantes, nem vogais e nem imperativos, e ao invés de, naquela tela, se desenhar um só caminho advindo da encruzilhada, ela talhou uma melancia menina, esquartejou-a, despejou as sementes pela tela, e no céu onde antes foi desenhada a janela com o teu nome, escolheu reconstruir-se a ela, pintou-se a ela, do lado de fora da janela, sem cercas e nem obstantes, nem obtusos e nem consoantes minimalistas, e para finalizar aquela tela, desenhou-se asas nela e aprendeu a sobrevoar os pisos acidentados, ofereceu-se destinos revivalistas, resgatou para si os limites e deu-lhes nova forma que é como dizer que do teu nome, foram feitas claras em castelo, adicionado açúcar amarelo, hortelã pimenta, no castelo de moimenta, no chá da tarde, uma laranja  com o teu aroma, e da saudade fez montanhas e vento e até gente de verdade, a vida que se movimenta em torno do jardim que já fomos, rochedos lisos e escuros, casas, assuntos e receitas, jarras vazias de flores, amores-perfeitos e deitou fora os costumes, os vícios e os antanhos que se tinham enraizado e desenhou cardumes no mar, massas verdes e sorrisos e uma canção dentro dela nascia e assomava ao voo apoteótico da liberdade, empreitadas de flores, tapetes de açucenas, tulipas, begónias, jacintos e chorões, dunas e elfos, ermitões e pintou uma avó Bina aos pés dos amores perfeitos, que lhe soprava baixinho, para a tela, deste novo caminho que o amor, este que és tu no centro da tela, não é pássaro de gaiola, nem abutre e nem passarola, nem garras de morte ou abismo, nem grilhões de parede, nem prisões celibatárias, nem durabilidade de prazos, nem a mais singela tarde é refém do amor, pois ele é forrado de saudade por dentro, mas por fora, ele é um voo em plena liberdade, sem passaporte, nem cartão de cidadão, sem pastilhas de enjoo e nem antidepressivo, o amor é sinónimo de asas. A avó Bina lê as folhas do chá da parturiente, e diz-lhe filha, que é urgente que acredites na fé e no amor, pois é avó, que é tudo o que há e tudo o que é, que é o mesmo que dizer que de ti, do que sobrou da memória do teu nome, tal como Huxley, ela reinventou um novo mundo, reabilitou a temperança tardia na renúncia do velho e na reconstrução de um amor novo, dedicado ao que é fecundo dentro de mim. E dentro dela, mais nenhuma janela receberá a mão dela, para escrever o teu nome que é como dizer tudo o que foi e tudo o que é, agora que é tudo o que há não prescreve no amanhã desenhado na tela. E nas mãos do jardineiro desenhou mangueiras e desenhou-se a ela, abrindo as torneiras ao jardineiro e desbotou a pintura para que não fossem procurados. A pintura abstrata estava pronta para a galeria futurista. Na caixa, escreveu-se frágil, que era a forma subtil de dizer-se que, mesmo que o mundo exploda, dentro da tela, o jardineiro e a parturiente continuam num diálogo imune ao tempo.

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