Substituir o ontem pelo já
Antigamente, o sonho, o nosso, era a roulotte conduzível, com música e os bens essenciais dentro, e fazermos acontecer a vida com uma banda sonora por detrás. Por alguns dias, uma espécie de férias para nos repormos dos danos que o mundo produz dentro e fora. O maldito stress. Bem vejo que fui só eu a quem sobrou o sonho. Ainda hoje, já consciente da minha derrota face às circunstâncias atuais, esse era um sonho que vibrava dentro de nós, a nossa cumplicidade garantia que tal aconteceria, ainda hoje o pretendo realizar. Ou deveria dizer, sobretudo agora? Nunca aconteceu. Entre mim e ele.
Depois de ter a certeza do funeral do amor, de me terem garantido não haver mais esse nós no futuro, ainda hoje sinto que vou cumprir o que era de ambos, agora só meu. E dou palco a isso, que esse isso me cresça, que aconteça no tempo certo. Quando as circunstâncias ocorrerem, e sei que não falo de boas circunstâncias, apenas das consequências que resultarão de mais um luto, mais uma perda, mais uma medalha de dor no peito, vou empurrar-me para o meu sonho. E até já lhe acrescentei braços e pernas, que é o mesmo que dizer objetivos maiores e secundários. Irei fazer-me feliz no abrigo desse sonho que vou realizar.
Agora sei que o amor não é feed back, não é algo que oferecemos e que tem amor de volta, que resulta num dar e receber, não, não é assim. Ou nem sempre é assim. Ou, ainda mais racional, connosco não o foi.
O amor incondicional só existe quando o dirigimos ao universo global e não o particularizamos a ninguém. Porque quando o particularizamos, o endereço falha, ou falha o carteiro, ou o tempo de entrega, ou a clarividência desse tempo, espaço, ou isto ou aquilo. E desse amor incondicional, definiu-se em mim que também o particularizado havia de ser entregue ao todo. É, afinal, quem sou. Até na escuridão posso saber isso de mim. Negar não faz sentido. É preciso dar nome às coisas dentro de nós, para que se arrumem definitivamente, para que se organizem e não deixem quaisquer dúvidas. E como me preparo para a terceira vinda de saturno, sinto necessidade de me arrumar por dentro. Quero estar inteira. As equimoses curam-se. As dores transformam-se. Reciclam-se. Os fantasmas acompanham-nos, controlados, eles no seu canto e nós no nosso. E depois da dor lancinante, aflitiva e incoerente do apego e da sua sucessão de polaridade, virá a saudade que é sempre a mais bonita forma de dizer nostalgia, e depois cumprir as metas, as imediatas e as que podem esperar e que só com tempo, permanência, coerência e boa vontade chegam. Vou comprar a minha casinha-com rodas, não uma roulotte campista, nada disso, uma roulotte de itinerante, que é o que sou, uma cigana vive em mim, mendigando vida em movimento, e esta casa há-de ter volante interno, que seja uma espécie de casca de noz, sim, uma casca de nós, do nós que já não pode materializar-se, mas que seja a inspiração para os braços e pernas que são as metas. Não me descrevo as metas, elas escrevem-se dentro de mim. Na verdade, estão já escritas. São as tatuagens, os marcos, os hinos de glória que nos inspiram a escrever o sucedâneo.
Visualizar faz parte de materializar. Temos que contextualizar na mente o que nos vai dentro do peito para que a coisa seja bem transmitida, a esse lugar superior que trará o que falta, para que se torne mais do que a essência de um sonho. No fundo, sempre fui jardineira. Só não escolhi as sementes certas. A mala preta de cd's continua a acompanhar-me para todo o lado. Sou uma idiota. Porque já podia ter mandado compor o aparelho que me faria ouvir as minhas paixões musicais, os sopros de vida que ainda me restam dentro, são sempre musicais, são o combustível de que me alimento ainda. Esta é a idiotia controlada. Não posso passar sem veículo, mesmo que o faça voluntariamente, estando aos dois e três dias com ele aqui parado, no pátio. No seu tempo, entrará na oficina. Enquanto isso, algumas apps me assistem nessa fome musical.
Faltam somente três dias para a lua nova de câncer. Gostava de sentir-me diferente nesta lua. O tempo das sementes está para breve. E também o das colheitas extemporâneas. Medo desta lua, mas substituo o medo pela música. Agora que o sol desceu, agora que me chegam mais ameaças por mensagem telefónica, agora que as águas se aquietam, agora que é este já particular, tão cheio de cansaço do mundo, recuo para os maneirismos, para o meu vício particular de notas musicais e depois de me descalçar, garanto-me um lugar privilegiado de ouvinte atenta à magia que continua a acontecer dentro de mim. E ganha-me a insensatez da dança.
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