Ceres e Perséfone

 





Não sou politicamente correta, dá-me nojo olhar no que o todo se transformou, na cegueira compulsiva, na corrupção, nos lambe-botas que pretendem todos o mesmo, poderes, para também eles abusarem, para poderem foder toda a gente. Daí nasce a inveja. Que é tanta, que já sobeja, pra este mundo e pra mais dois ou três.  Que a sociedade é isto, reduzida a um fodes tu, ou fodo eu. E as menages a trois é o que mais há, e gang bangs e muito mais, como sabeis. Eu é que não alinho em filmes. Muito fiz eu, e parece que bem, porque consegui me defender, a mim e aos meus dois irmãos menores de pedófilos e de filhos da pauta. Quando me sentia ameaçada ou sentia que ameaçavam os meus irmãos, repetia alto o nome do meu pai, Francisco Rodrigo da Silva Guedes, esse é o nome do nosso pai e repetia outra vez, e quantas vezes fosse necessário, e sentia uma força, uma coragem que nunca nenhum adulto me ensinou a ter, que era minha e que vinha dele. Pelo menos, assim acreditava, na altura. E fazia-o, para que não me tentassem confundir com as suas ilusões e jogos de tanga. O corpo do meu pai não se apresentava, mas a energia dele estava ali, como uma muralha. E comecei a ter de fazê-lo muito cedo. Façam as contas comigo. Três miúdos, eu com seis, o Tero com três e o Ruizinho com um ano, até aos meus dezasseis, tive que ter sempre em conta esse recado. Havia alguém maior que eu, mas não era nem pai e nem mãe.  Aí a vida chegou para nos dar mais uma bofetada. Foi quando perdemos o caçula. O pai já nos tinha ensinado a falta. Ele ensinou-nos da infância, a saudade. Foi isso que ele mais nos ensinou. Nessa altura, andei a pensar, seriamente, se seria uma espécie de maldição familiar. De cinco, passarmos a quatro, de quatro, passarmos a três, que, bem vistas as coisas, depois do Ruizinho ir, não fomos sequer três, porque cada um se voltou para dentro de si mesmo, privatizando o luto, nos aposentos individuais, e quando nos cruzávamos, creio que a dor aumentava, porque dávamos conta que já não eramos coisa nenhuma, ou seríamos uma espécie de cobaias, uma espécie de joguete nas mãos da tal dita cuja, que vinha e intercedia e separava e subtraía, foi mais um triste pensamento, também ele recorrente, na altura. O da injustiça. Que tínhamos sido enganados. Que termos sido cinco, afinal, era a grande ilusão para aprendermos a dor. A minha mãe tinha que trabalhar e as empregadas que arranjava lá para casa, ou eram da província e queriam conhecer o mundo das cidades, longe dos campos e das sacholas ou queriam todas namorar. E liam a Gina e outras coisas nada interessantes para a minha idade. A primeira vez que fumei, aos nove, roubei cinco escudos à empregada e fui comprar kentuckies no quiosque da estação, um grupo de quatro no monte, perto da escola, e achei que ia morrer, mas caramba, quase fui adulta, nessa altura! Em parte, era verdade. Só que não! Porque depois a empregada começou a aproveitar-se disso para me fazer arrumar a cozinha enquanto ia namorar com o bombeiro e, se eu não aceitasse a regra desse jogo, ela denunciava-me à minha mãe e lá se iam os privilégios de poder ler até mais tarde, não ser obrigada a comer sopa e outras coisas que tais. Então, arrumava a cozinha pelo preço de dois escudos ou dois e quinhentos e, depois da cozinha arrumada e quando ela chegava, vinda do namoro, eu arranjava maneira de ir ao quiosque da estação comprar cigarros avulsos. E cromos para as cadernetas dos meus irmãos. Sim, eu comecei a fumar às escondidas com doze anos de idade. Já tinha lido Christiane F. E muito antes, já tinha lido coisas piores, mais pesadas, como é o caso do último dia de um condenado, o julgamento de Nuremberg. O meu pai partiu e herdamos toda a biblioteca, autores russos, americanos, ingleses, franceses, portugueses, todos se prontificaram para me ensinar as coisas da vida. Não havia censura. Havia negligência. Ignorância. Permissividade. Também foi com essa mesma idade que a minha mãe me apanhou a fumar no campismo, e que a partir daí me proibiu de pedir ou aceitar cigarros (ela desconhecia a negociata do tabaco) e começou a dar-me dinheiro para comprar o meu próprio tabaco e ainda pagar tabaco e discotecas à minha prima e assim. A primeira vez que experimentei um cigarro dos que faz rir, a marijuana, tinha dezasseis anos, foi no CPN, junto ao Torres, com o Albano que era mais velho que eu, que ao invés de me tentar apalpar, conversava comigo, ele no degrau debaixo e eu sentada no degrau acima, que a escada era alta e dava para ver a estação, os comboios, a chegar de Campanhã e a irem apinhados para o Marco ou para a Régua. Por volta das três da tarde, sempre com o olhar do senhor Mendes atento. Foi experiência única. Não voltei a fumar marijuana nessa idade. Voltei a fazê-lo anos mais tarde e sempre a título de experiência social com os amigos próximos e nunca fiquei viciada. Se hoje tivesse, provavelmente, já não tinha. Mas a droga sintética nunca quis experimentar. Para mim, fumar isso é mais saudável que o tabaco, mas é como se tivesse à conversa com um amigo e bebesse um cálice de Porto. Uns gostam disso, outros gostam de música, outros de gelados, outros de sexo, outros gostam de álcool e outros de flores. E outros gostam disso tudo e até gostam de mais coisas e outros não gostam de nada disso. Seria mentira se dissesse que não sou hedonista. Não somos todos? Eu ia lá jogar ténis de mesa, porque queria sentir o que teria sentido o meu pai que era campeão disso e de bilhar e snooker, e só lá ia nos furos das aulas do liceu.  E por ter perdido o meu pai há muito, e o avô nessa altura, precisava de figuras masculinas que me servissem de modelo, e o sr. Mendes passou a ser um pai-avô emprestado, com quase idade do meu avô Rodrigo e que, tal como o avô, contava histórias fantásticas de pessoas que eu nunca vi. De um Ermesinde que eu não conhecia. Todos temos experiências e a vida é isso. Uma experiência. E quando não temos progenitores presentes ou são negligentes, a vida é uma experiência sem rede. Se caíres, podes morrer. Também foi com essa idade que tive a experiência de quase morte e o que aprendi sobre ela é que não existe. Que é aparente, como a sociedade, só que mais nobre, porque não se veste disto e daquilo, com truques e nem maquiagem. A morte é só um estado de ser. Noutro lado. Ou seja, o estado de não estar neste lado. Essas coisas aprendem-se durante os saltos de fé que damos. O que sei da vida não é conhecimento académico, ao contrário, é muito experimental. Sempre gostei dos laboratórios de ciências e dos seus tubos de ensaio. Considero-me aberta e otária. Hoje bastante menos, de ambas. E os meus professores foram essas experiências todas, essas pessoas sábias e ternas, autênticas e sem fingimentos, com paciência para as minhas questões, e claro, os autores dos livros que li. É como na faculdade, tens que ter aulas teóricas e práticas, mesmo que depois não tenhas trabalho. E agradeço, ainda hoje, o meu pai me ter colocado no caminho pessoas generosas, sempre mais velhas que eu, com as quais não tinha que lutar ou defender-me, podia, simplesmente, baixar as defesas e aprender, e porque não tinha paciência para os interesses dos miúdos da minha idade, era uma ânsia de crescer, de ser adulta e colocar limites. Agora, quando olho para trás, para todo o percurso, me arrependo de não ter posto limites antes, de não ter erguido barreiras. Num mundo ideal e utópico, não o quereria fazer, mas neste onde tive que viver e sobreviver, teria me poupado muitas mágoas e desapontamentos. A partir daqui, já sou culpada. E não vinga a lei da selva, faz-de-conta que estou sozinha e como sou responsável por mim, faço o que melhor me aprouver. Nada disso. Apesar de ter "beneficiado" de uma mãe modernamente ausente, eu própria me impunha limites e responsabilidades. Os meus irmãos eram da minha responsabilidade. Defendê-los. Estar presente. A minha mãe tem oitenta anos. Fez tudo ao contrário na vida, por ausência parental. Partiram ambos ainda não tinha dez anos. Desse ponto de vista, posso agora entender que não tinha melhor plano para nos oferecer, porque também a ela não lhe foi oferecida opção. E ela fugiu dos lutos constantes que atravessaram a vida dela, transversalmente. E para fora. Quem não se volta para dentro, não cura. Adia o desligamento. Devo-lhe muito, em termos de aprendizagem de vida e gratidão pelo que conseguiu e até pelo que não soube fazer. A primeira coisa que aprendi com ela foi a não querer ser como ela. Sobretudo com a sua ausência e as intermitências da sua estadia, no antes e depois do trabalho dela. Aprendi que os lutos são a fonte de mais desequilíbrios emocionais e de patologias mentais. Que há pessoas que, tal como a minha mãe, ficam desconetadas do coração desde cedo. Que aquilo que é solidão para uns é solitude para outros. Que as pessoas se ferem mais a entrar em relacionamentos fugindo da solidão, do que da fome. Que a procura da estabilidade afetiva, numa encruzilhada, sem bússola, cria instabilidade noutros campos. Que não se deve comer nada em casa dos outros. Mas que se não deve rejeitar uma oferta e se deve agradecer antes de a receber. Que os outros é que são bons, nós é que não. Que o que queres aprender ou fazer não te é permitido. Por causa do que pensam os outros. Por causa da família. Dos outros. Hoje ela já aprendeu que os outros não importam nada.  O que nos importam os outros? São peso morto. Que não há tempo para os filhos, quando se trabalha. Que os familiares são sempre bons, mesmo que nos façam mal. Mesmo quando falam mal do pai, até quando falam mal da mãe. Que os roubem e os enganem a vida toda, que teçam intrigas e inveja, que queiram trazer ignorância em abundância para dentro da nossa casa. Em suma. Muita coisa. De coisa nenhuma. Só podemos dar o que temos e o que procuramos. Se passarmos a vida a escapar dos lutos, o que encontramos lá fora são gritos surdos. E cegueira. E a compaixão que sinto por ela, hoje, vendo-a de fora para dentro, nos sapatos dela, é muito maior do que a tristeza e ressentimento que durante a vida em comum por ela nutri. 

Não gosto que me digam: Pensa desta maneira ou daquela. E quero assim e assado. Quero que sejas desta forma, não devias fazer isso, tens que ser mais cozido, e se não pensas como eu, então és uma idiota, uma imbecil, e se eu me enervar, pela minha superioridade mental e física, vou bater-te como se fosses um objeto que se colocou à minha disposição para que eu possa partir-te e deitar-te fora. Coisificando-me. E a partir daí, quando a matéria em jogo colide com a minha natureza, que a ela obedeço, com as lições de vida do que aprendi e do que não apreendi, já não é coexistir, é sobreviver, lutar para poder ser eu e, em última análise, para continuar a sê-lo.  Deus no céu e o outro, qualquer outro, na terra. Não te atrevas a ver-te como tua própria prioridade. O discurso interno era este. Os outros estão sempre em primeiro lugar. Não sabia onde tinha ouvido isso, sabia que era outro pensamento igual à maldição da subtração da família. O que esperas e sonhas e queres, guardas no bolso. Nunca pretendi ser desagradável. Em criança sim, precisava de muros altos. Até à altura em que saí de casa, por volta dos meus dezoito anos, mantive sempre as barreiras erguidas.

Ainda tenho presente o discurso da minha mãe, agora vendo-a de outra perspetiva, mas eloquente e imbuída de chantagem emocional.  Ou deixas esse namorado mais velho que tu tens ou volto a trazer para viver connosco aquele que não suportas. Que eu chamei sempre de diabo. A escolha estava feita quando projetou a primeira parte da sentença. Deixá-lo não era opção nenhuma, o resto da frase veio resolver a prontidão do tempo. Num ambiente seguro, o perigo deixa de te perseguir e tu baixas a guarda. E aos vinte e nove, já a raposa tinha entrado e provocado danos, que tentei emendar com erros e a cortesia sempre a sobrar-me, como as bainhas nas calças novas. Sempre a diplomacia. Havia uma lei qualquer que punha a tal senhora da justiça numa posição inconveniente ou injusta para mim e o tal do concílio tinha que caber. E prejudiquei-me imensas vezes. Ganhou quase sempre o desejo do outro e ao meu, esqueci-o, arrumei-o num canto, acreditando que poderia ser reciclável, provavelmente, para uma cartada nova da vida, sei lá, mais à frente. Haveria sempre tempo de ser eu. Que primeiro estão os outros. Quem conhece um caranguejo, conhece-os a todos. Somos todos lamechas, não é? Todos cheios de nódoas e de quadros de vitimização, de dores que não curamos e outras que vieram connosco, herdadas. Somos verdadeiros empatas, temos sempre nos bolsos umas duzentas gramas de empatia para os outros e, dos outros recebemos, quando muito, um empata fodas. Cedências e sublimações. No pior dos casos, um narcisista. Aqui não há concílios, é um palco novo, extremamos posições- se não o fizermos, a solução é escalada e feia. Partimos para a separação. E está tudo certo. E manter sempre a coerência. Vacilar não é solução, é armadilha. Nos namoros da atualidade, transpira muito controle e violência, seja do ponto de vista intelectual, físico ou emocional. O processo de resolução tem que ver o corte ali, antes que brotem mais sementes. Game over.  E aqui, pouco importa se é matrimónio, se relação laboral, social ou consanguínea. Tréguas ocasionais que, mais tarde, se cederes, serão lutas braçais. É um grito, um alto e para o baile. Sobretudo se os intervenientes não puderem sentar na mesa, como pessoas civilizadas e, amistosamente, discutir as diferenças. Através de argumentos claros e compreensivos.  A tolerância e a transparência são obrigatórias. Em qualquer área da vida, seja com o pai, o patrão, o tio, o primo, o vizinho ou o namorado. O diálogo é a única forma de se construir paz. O monólogo é a única forma de se subsistir sozinho, em monólogos circunstanciais e acidentados ou enlouqueceríamos. Temos que conversar connosco, ir para dentro. Para ficar resolvida a decisão por fora. E não falo isto do ponto de vista da saúde mental, com sarcasmo, cinismo ou leviandade. Somos todos seres humanos. Que as nossas construções, sejam elas conversas, projetos ou edifícios, se pautem pela humanidade e civismo, do que nos lapida, efetivamente! Temos de ser centelha do fogo numa consciência ativa, que é, afinal, o que nos faz ser humanos. E então, eu diria que quando vim ao mundo, não me conhecia de todo. Fui-me desembrulhando, consoante a vida surgia, o que exigia de mim, o que era em mim natural e passional ou, por outro lado, consequência ou resposta, instinto primitivo. Os depois consequentes. Tentava dar um outro passo, mais longo, mais fundo, para testar se ainda tinha pé. E tinha, e dos braços nasceram asas que alimentei com leitura e, às vezes, quando ficavam murchas, eu regava com música e quando a vida me deixava sem água, eu ia buscar poesia, ou pinturas, ou fotografias. E nunca mais saciei a sede desses voos. E eu sou essa, não sou púdica. Sou corajosa e revelo-me sem recear. Sou uma águia dos penedos que teimou sempre alçar o voo. Neste mundo três dê. Da matéria. Mas essa não é quem eu sou, senão uma parte. Ninguém é só matéria densa. Somos imateriais, e temo que essa parte que é bela, afinal, seja a que mais cedo me alcance, numa qualquer curva, ainda assim, é pra lá que aponto as coordenadas. O mundo é dual e eu contemplativa. Acredito que essa particularidade provenha dos dois polos: inato e adquirido. Tenho marte nas minhas águas. Posso ver levantar furacões, mas se não me distrair, nem cair com os ventos, aglutino elementos essenciais, de forma a conter a violência. De aparência que oscila entre calma e temperada, posso ser pequena, mas deu-me deus este talento, de ser cordialmente marcial, numa tempestade; quando vós sois vento, eu traduzo epifanias, e nos intervalos da glosa, uma chave, uma password que rima com o todo, dá-me para ser generosa e dar estalos a torto e a direito, com luvas de pelica, em toda a gente morna, que não assume posições, que não toma atitudes afins, e depois desenho uns palácios, meia dúzia de tapetes de aladim, uma águia a namorar o chão e de tanto trapézio sem rede, de tanto barro na parede, de tanta saudade dele, deu-me para perder o pudor, para esculpir o oceano desta coisa que é dor, que foi intensa e agora é motivação e restinga. E linda, cá dentro de mim.


 


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