O meu menino azul
Render-te a homenagem.
Morreste faz hoje trinta e nove anos. Depois de uma tranquila tarde, entre gravações, música e confissões, depois de um jantar de esparguete com bife de peru que tanto gostavas, das trocas e baldrocas, depois de tocarem à campainha, os teus amigos das vivendas a dizerem-te que já estavam todos, que os últimos que tinham ido de férias já lá estavam todos, pediste umas moedas e foste a correr como uma ave, no teu bando. Disseram-nos que iam à Londrina, a confeitaria perto dos bombeiros. Não me recordo com exatidão o que iam lá fazer, se comprar bombocas ou chicletes gorila, não sei. Eu tinha feito dezassete há pouco. O avô Rodrigo tinha-nos deixado em Julho, no aniversário do tio Domingos. Tu resolveste ir atrás dele. A esta hora, já não estavas cá, já a Raquel te tinha trazido até à entrada das Vivendas e corrido para nos dizer que tinhas te encostado ao portão da fábrica de etiquetas, ali ao lado dos bombeiros e que encostaste a mão ao peito e caíste. Foi um enfarte. Foi um desastre. Foi o que já tinha de ser. A avaliar mais tarde, pelas cassetes que gravaste, falando do pai, da medalha que me tinhas feito prometer que te daria, com a nossa senhora de Fátima, a medalha de prata com um véu azul. Não imaginei que a tiraria do meu peito tão rápido, para depositá-la no teu, sem nem poderes apreciar a medalha. Levaste-a. A esta hora, estavas sem vida, mas não nos disseram. A esta hora, a urgência do S. João era diferente. Com uma porta de garagem enorme, sempre aberta e a porta da sala de urgência era de vaivém, batia-te na cabeça, a tua maca impedia o seu fecho totalmente e de cada vez que alguém entrava, essa porta batia-te, mas tu já cá não estavas. Nem a vida que tinhas dentro de ti, nem o riso, nem o mel. Eras só mais um corpo negro, cianusado, azul, porque tinhas nascido azul e nunca ninguém, enquanto pôde, prestou atenção ao que dizia a mãe e o pai. O dr. Libério passou um atestado de estupidez à mãe, quando ela pediu, ainda tinhas dois aninhos que te fizessem exames, eletrocardiogramas, e ela disse-me que mesmo o pai, antes de falecer, disse à mãe: o nosso filho tem o meu problema, Eva. O pai sabia e quando ele foi embora, tu tinhas um ano. A mãe insistia para que reconhecessem o teu problema. Até essa pequena idade de dois anos ninguém te reconheceu nada. A não ser um fígado dilatado, a não ser isto e aquilo. Crescias num percentil normal. Não podias correr, nem jogar à bola, não podias andar de bicicleta, não podias ser molestado, nem passar noites em claro. Não podias viver, a não ser na velocidade lenta que era aquela que te preparaste para aceitar com o tempo e nunca conseguiste. Entre milhentas idas ao hospital, epistaxes, cirurgias, ninguém te podia bulir, de maneira mais severa, nem te dar pontapés, como te deram tantas vezes, que ficavas negro. Cansado. Exausto. Porque eras um menino azul. Lembro-me do dia em que nasceste. A mãe, o pai e o sr. Coelho, que era porteiro no hospital, vieram a Penafiel, a casa da tia Lurdes, comeram um belo assado e andaram muito a pé. Chegaram a casa, já perto da meia-noite. Não houve tempo para parteiras, diz a mãe, não houve tempo, porque querias chegar e rompeste o véu. Eu estava ansiosa de ouvir um bebé naquela casa. O meu irmão mais novo ia nascer. Foi logo depois da meia-noite e nasceste rápido. Sei quem estava lá em casa a assistir o parto, o pai, que quando viu a mãe aflita, deve ter ligado para a irmã mais próxima, a tia Camila e comigo estava o nosso irmão e o Vitó, filho da tia Camila. Ainda me lembro o que ele estava a fazer. Que lhe dei na cara. E ele fazia o mesmo ao Antero. E o tempo parecia ter parado. Até que te ouvi chorar. Saí do nosso quarto e fui a correr para o quarto onde tu tinhas berrado. E foi uma alegria que não tinha fim. Tu choravas, mas nós sorríamos. Bati na porta e perguntei ao paizinho se te podíamos ver. E ele disse, já vai, espera mais um pouquinho que ele está a ser limpo. A mãe estava deitada, combalida. Mas tu estavas enrolado no que me parecia ser gaze branca, mas era um cobertor que te cobriu bastas vezes depois. Depois de teres nascido, comemoramos sempre o teu aniversário com alegria, mas tu sempre na velocidade possível que era a lenta e foram muitas vezes que tu furavas a lentidão às escondidas e corrias, e andavas de bicicleta e jogavas à bola. Muitas vezes. E todas essas tarefas, por muita alegria que te trouxessem, a de ser igual aos outros meninos, depressa acabavam, porque te deixavam derrotado. E foste morrendo durante os anos em que te julgávamos vivo. O dr. Libério nunca mais ignorou a mãe, depois de uma ida ao hospital quase te perderem com as hemorragias recorrentes. Na tua mesinha de cabeceira, esteve um livro de nome O coração transplantado, de Peter Hawthorne, que quiseste manter contigo, ao teu lado, porque depois de uma série de episódios que agravaram a tua saúde, o médico cardiologista falou contigo e com a mãe e dizia que deverias receber um novo coração, que não precisavas de decidir logo, mas que tinhas de o fazer. E que dependia de ti. Que se a mãe decidisse por ti e não quisesses, de nada adiantaria. E ouvimos-te várias vezes dizer que só irias querer outro coração se estivesses mesmo a morrer. Se tivesse mesmo que ser. E não teve que ser. Tu não quiseste que fosse. E foste morrendo devagar, rejeitando sempre essa possibilidade. A Rita, que a mãe foi buscar ao Convento em Santa Catarina, perto do atual Ribadouro e que tomou conta de nós antes de vir a Lurdes, é que te falava muitas vezes sobre seres operado. E que te afagava os cabelos, no colo dela, quando te doíam os dentes e não havia ninguém que se sentisse com coragem suficiente para desafiar a morte na tua boca. Morreste um pouco todos os dias, talvez que, quando dormias e ouvíamos o tambor bater na almofada a confirmar que estavas vivo, talvez nessa altura da noite era quando estavas mais vivo. Porque descansavas e podíamos confirmar que o teu coração batia compassado naquela cama. Se o teu corpo estivesse entre nós, este ano terias feito cinquenta anos. Nunca ficaste o tempo suficiente para te tornares um homem. Assim querias ficar, pequeno azul e doce. E nem por isso esquecido. O anjo que entrou na nossa vida e caminhou dela onze anos depois, sem queixas, sem choros, sem máculas. Só os anjos são assim. Todas as famílias têm, com certeza, datas bonitas e outras que não. O pai foi o nosso primeiro 11 de setembro e tu seguiste-lhe os passos.
Um beijo da tua mãe e da tua irmã. Dá beijos nossos a todos.
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