Terapia autocentrada

 





Já te não sou há muito. Já só te sou, talvez uma sombra de algo que poisou em ti, viveu dentro de ti e se não acomodou à tua ausência. Fiz as contas no calendário humano. Faltas-me há 9496,5 dias. São muitos dias e noites, horas, segundos de agonia. E quando saíste, nem te olhei de frente, porque teria que esganar os sentimentos ambivalentes que pulsavam, num limbo de medo e de desesperança. 

Saíste pela porta da frente ou estarei enganada e será tudo um erro de cálculo da minha ilusão que continua em preâmbulos e monólogos absurdos. Continuo em negociações comigo. Lembro-me que fui à varanda do nosso quarto, que a palmeira do jardim ocultava a tua saída, e que, tal como previ, foste ao café do fim de rua, sem saída, onde vi os teus sapatos arrastarem-se para dentro e caminharem para fora. Não te podia ver o rosto. Lembro-me da mecha de cabelos por cima do carro, de te ver entrar e lembro-me que a minha criança interna tem que ter morrido ali. Teve um apagão. Um grande apagão. Febre. Medo. Tomamos decisões no calor dos momentos e é quando vinga a raiva, sobra a frustração, impera o destempero. Fiquei sozinha. Não fui capaz de descer as escadas para a vida. Para a cozinha, para a sala, para abrir a porta e ter a coragem de ver-te sair. Sempre fui impetuosa. E apaixonada. E este meu ego a dominar-me a mente, tu tens razão, tu tens sempre razão, era esse o monólogo. Fissuras se abrirão em todas as noites da tua ausência. E olho, neste momento o dia, lá fora, alto e claro, o sol que brilha, mas eu, sabes, ainda estou na primeira noite da tua ausência. Deitada na nossa cama, vendo as sombras da palmeira desenharem monstros nas paredes do quarto. A memória é medonha, e eu carrego tudo comigo. Não me surpreende este meu cansaço. Não poderia ser de outra maneira, que isto, este corpo é só um corpo que se arrasta para o eterno devir dos dias que são cinzentos, tão cinzentos, porque eras tu que os colorias. Nessa noite não foi noite. Nessa noite foi fim. De uma década de vida, de ser feliz, de ser inteira. Sempre fui inteira contigo. Nunca me diminuíste. Ao contrário, sempre viste a liberdade que eu trazia dentro e as noites demoraram-se em mim, com essa despedida. Partiste. A minha criança partiu. O meu sonho morreu. Em pedaços, ali, nem desceu as escadas a pedir ajuda, nada. Nem suportava ouvir vozes humanas que me tentassem conciliar a vida. Era proibida a comiseração, o consenso, o sonho. Eu era só indignação por ti, por mim, por tudo, que se partiu tudo, ali, nesse mesmo dia. 

Depois foi evitar tudo o que estivesse associado a ti, o trabalho, a música, os aparelhos, o escrutínio rigoroso de evitar tudo o que a vida contivesse, onde caías tu, o teu nome associado, punir-me e evitar olhar, evitar sentir, como fui boa durante estes anos em fechar tudo dentro, acreditando estar vazia. Com certeza, esperaria o milagre do desaparecimento. Tudo o que morre, fenece. Some-se. E tu não o fizeste. Ficaste inteiro, cá dentro, imaculado. Como te atreveste? Depois de tudo, de todas as dores e vivências e feridas e cicatrizes, depois de todas as corridas e malabarismos, de fugas prá frente, de fugas, continuas inteiro, tal como os meus gatos na ombreira da janela, com os seus bigodes ao sol, mimalhos e felizes, tu continuas em mim, doce, terno, inteligente, ágil, forte, cientista, moderno, interno e continuas a viver noutra latitude e eu continuo a sonhar-te os passos. A vida é esta sucessão de coisas incompreensíveis, de mutações e datas, de amores proibidos e eventos declinantes e jardins e estações e todas as vontades de partir. 

Depois, a vida nunca deixou de acontecer. Fui sempre salva pelos animais. Sempre. Quando os humanos irrompiam, conjeturando desafios e empreendendo a minha energia para outro espaço, outro projeto, outra forma de viver, os animais estiveram sempre comigo. E eu com eles. Sempre me salvaram o coiro, sempre foram o estofo, o porto seguro das amarguras que são, assim, uma espécie de desenhos toscos que rasuramos distraídos, sem nem medir consequências, porque acreditamos que mais fundo não pode doer, não há mais fundo, não há mais dentro, quando é dentro que esse fogo queima e arrasa a fundação, a original inclinação para a paixão, para o sonho que perdeu dimensão, que se esfarelou todo no chão, ficam as vigas em pé, uma vida inteira, até, para nos lembrar do que nos atrevemos de esquecer. Não há construção que edifique se a base for aquosa, se for um pranto, um lago de águas fétidas e paradas, nada se constrói em cima de areias movediças. O que se constrói é a ilusão, toda catita, toda arranjada e pronta e desprevenida para a certa e imprevista detonação. 

Vou, de ponto em ponto, reconstruindo o edifício para perceber a fundação de novo. No princípio eu era inteira. Agora fica o esboço que vou acrescentando, num dia sim e noutro menos e noutro não e noutro nada, vou reconstruindo a que fui, que essa é que era inteira, a original, antes da derrocada, da queda, da implosão, da machadada na minha casa. A palmeira já não é a mesma. Não pôde ser transplantada. O baloiço foi destruído pelas intempéries, o banco velho e gasto não recebe mais rabos em cima, tombando ao peso dos humanos. Só as aves lhe podem poisar, e os gatos. Arrumo as prateleiras dos afetos, limpo o pó aos meus braços que já não abraçam e se esqueceram do caminho que leva aos teus. Ponho na boca o batom translúcido, desta boca que já só é usada na fala intermitente com este e aquele humano, com este e aquele animal, nas refeições enfadonhas e nos pés, que me sustentam o sonho, ponho a sandália informal. Ainda é Verão lá fora, mas por dentro sou alimentada das tuas invernias. E isto é o mais próximo que sinto do que antes sentia. Tudo o resto é espuma, é vento, é água em ebulição. Ainda sonho com o dia em que me visitarás na torre de menagem, onde tocarás para mim a elegia da saudade e verás o sonho que ainda tenho no meu colo, agora morno, que em breve se desprenderá, atingindo o cume dos teus penedos e voando para longe, prestando homenagem ao amor e à liberdade. Não aqui, neste plano, quero que me encontres em Castelo. É lá que moro, desde que me deixaste. 

Não olho para trás mais, hoje não. Não corrijo. Não emendo. Não acrescento. Deixo as restantes agonias para outros dias. Há sempre tempo para curar feridas. 

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